10.10.07

Talvez no oitavo dia, da segunda década, do Vindimário*

Por medo de errar demorei algum tempo até escrever o título desta crónica, título esse que pretende dar conta da data de hoje, à luz do calendário republicano instituído em França, no ano de 1793. Neste calendário cujo principal propósito era erradicar qualquer referência católica na organização do tempo, colaboraram matemáticos, astrónomos e até um poeta. Apesar de tão sábia génese o calendário republicano não só nunca teve grande proveito como causou enorme desorientação no quotidiano dos franceses, fossem eles jacobinos ou girondinos, monárquicos ou republicanos. Rapidamente atirado para o baú dos excessos revolucionários este calendário é um dos melhores exemplos donde nos pode levar não apenas a intolerância mas sobretudo a presunção de que a religião e a História se apagam por decreto.
Na verdade não só não se apagam como fazem questão de se atravessar no nosso caminho mesmo quando acreditávamos já tudo ter resolvido nesse domínio. Por exemplo com que nos ocupamos nós neste Outubro de 2007, contados a partir do nascimento de Cristo, ou neste Vindimário, do ano 216 da República Social Universal, estabelecida a partir da proclamação da República em França? Com as capelanias. Por enquanto com as dos hospitais. De seguida com as das prisões e talvez cheguemos às das Forças Armadas mais o seu bispo major-general, D. Januário. ###
Estarão os portugueses preocupados com as capelanias? Não creio. Mas quer o Governo quer a Igreja católica têm boas razões para se olharem com mútua apreensão pois, como aqui escreveu ontem Rui Tavares, “ou os bispos não souberam ler o diploma” ou, acrescento eu, o diploma de que falavam não era este.
Parece-me óbvio que o Estado português não pode dificultar o acesso à assistência espiritual àqueles que por circunstâncias especiais da sua vida – e regra geral circunstâncias especialmente difíceis – não podem frequentar os seus espaços habituais de culto. Já tenho sérias dúvidas sobre se deve o Estado português pagar esses mesmos serviços de assistência espiritual. Mas no meio do desmando dos dinheiros públicos tenho de convir que há certamente verbas pior gastas, sobretudo se tal assistência servir não só para diminuir sofrimentos como também para tornar menos frequentados os “gabinetes” onde pontuam “consultores do bem”, astrólogos, intérpretes de sonhos e outras bizarras práticas.
É óbvio que a Igreja católica defende o seu statu quo. E também é óbvio que há quem suspire por trocar Setembro pelo Vindimário. Mas muito mais interessante do que essa irritante espuma é verificarmos como a Igreja católica tem sabido ocupar o espaço que os estados europeus abandonaram. Quando os exércitos e as administrações coloniais retiraram de África e perante o ruir dos novos estados, as autoridades eclesiásticas tornaram-se frequentemente no único interlocutor confiável. Freiras, padres e voluntários integrados em organizações de carácter confessional mantiveram a funcionar hospitais, escolas e garantiram o mínimo de normalidade. Na Europa, nos sectores em que o Estado não é capaz de assumir o seu falhanço, como a educação, a Igreja católica tem visto crescer o seu prestígio e poder. Graças aos desatinos da pedagogia, aqueles crentes e não crentes que estudaram em liceus com nomes de matemáticos, como Pedro Nunes, ou dum poeta, como Camões, inscrevem agora os seus filhos antes mesmo de nascerem em escolas que se apresentam como Escravas do Sagrado Coração de Jesus,
Em 2007 d.C. Deus é muito mais do que uma questão de fé.

Público, 9 de Outubro