24.12.04

Artimanhas contabilísticas

Interessa esclarecer em traços genéricos a mecânica da transferência de parte do Fundo de Pensões da CGD para a Caixa Geral de Aposentações (CGA) com vista a tapar o buraco orçamental. Mais do que isso, aferir o impacto a prazo que isso terá, forçosamente, no bolso de todos nós.

Antes de mais, vejamos o que são fundos de pensões. Trata-se de patrimónios colectivos, geridos por entidades especializadas - sociedades gestoras de activos ou seguradoras - destinados a fazer face a pensões ou complementos de reforma de um determinado agregado, constituído este por trabalhadores de empresas ou outras instituições. Os fundos são alimentados periodicamente por dotações, quer dos próprios trabalhadores, quer sobretudo da entidade patronal. Os montantes desta forma recolhidos, são aplicados em valores mobiliários (acções, obrigações, warrants, etc.) e(ou) imobiliários (terrenos e edifícios destinados geralmente a arrendamento), de acordo com uma determinada política de investimentos, previamente definida e que vai sendo ajustada ao longo do tempo. O ajustamento desta política depende de vários indicadores, como a evolução dos mercados financeiros e de capitais, a rendibilidade do fundo ou a estrutura etária e esperança média de vida da população por ele coberta. As dotações periódicas para o fundo vão sendo também ajustadas periodicamente em função de complexos cálculos actuariais que têm como pressupostos a evolução prevista daqueles referidos indicadores e, como objectivo, a detenção de meios suficientes para fazer face ao pagamento das prestações de reforma, à medida que os beneficiários se vão aposentando. Diga-se finalmente que o património dos fundos de pensões é intocável para fins que não os previstos, ou seja, não responde nem pode ser onerado por responsabilidades ou dívidas da sociedade gestora, da entidade patronal ou dos beneficiários.

Quando se fala na transferência de parte do Fundo de Pensões da CGD para a CGA (o organismo que gere as reformas da função pública), estamos no fundo a falar de uma mudança de entidade gestora. Ou seja, transfere-se para a órbita da CGA um determinado volume de activos e as responsabilidades (pagamentos futuros de pensões) por eles cobertas. Se admitirmos que ambas as entidades detêm igual competência técnica na gestão de fundos de pensões, não advirá daqui nenhum mal ao mundo.

Só que a operação não acaba aqui. Quando se anuncia a existência de um buraco orçamental, isso significa que o Estado entrou em ruptura de tesouraria e necessita desesperadamente de cash para solver os seus compromissos imediatos. O PEC (Plano de Estabilidade e Crescimento) a que os países da zona Euro se obrigaram, estipula um tecto para o défice orçamental equivalente a 3% do PIB. Ou seja, os diferentes Estados podem emitir dívida pública, líquida de reembolsos, até àquela percentagem do PIB, devendo porém ter em atenção o critério também estipulado para aquela, que limita o seu stock a 60% do PIB. A Comissão Europeia é porém menos exigente para este último critério, que já foi ultrapassado por vários países, entre os quais Portugal. Ou seja, o excesso de défice que ultrapasse os 3% do PIB terá ser de coberto com outras receitas, que só podem provir de um acréscimo de rendimentos (o que, tratando-se do Estado, significa aumentar impostos) ou da venda de activos.

Ao passar a ter sob sua gestão 1.000 milhões de euros de activos do fundo da CGD (que se somam a 1.400 milhões que já haviam sido transferidos anteriormente), o Estado passou a dispor de valores facilmente mobilizáveis. O "facilmente" é teórico, dado que uma oferta repentina no mercado de 1.000 milhões de acções e (ou) obrigações provocaria fatalmente uma degradação das respectivas cotações e o encaixe seria bastante inferior. Mas como o vendedor é o Estado, ele encontrará uma entidade "disposta" a comprar-lhe os activos por 1.000 milhões de euros. E essa "entidade filantrópica" só poderá ser... a Caixa Geral de Depósitos!

Efeitos práticos desta operação de "carpintaria" financeira:
  1. O encaixe da venda dos activos do fundo de pensões não será reinvestido por este, mas destinar-se-á a financiar o depravado consumismo do Estado;
  2. O Estado está a utilizar valores do fundo para outros fins que não os do seu objecto (o pagamento de pensões de reforma), violando a regra sagrada da intocabilidade do património daquele. O que seria se uma qualquer empresa privada, numa hipotética situação de ruptura financeira, recorresse aos activos dos fundos de pensões dos respectivos trabalhadores?
  3. A descapitalização do fundo que assim se concretiza terá amanhã de ser corrigida com dotações extraordinárias por parte do Estado, cuja origem será, fatalmente, o aumento de impostos.
  4. Porém, a reposição do equilíbrio do fundo implicará dotações superiores a 1.000 milhões em montantes tanto maiores quanto mais diferidas aquelas forem no tempo. Ou seja, haverá também que repor os rendimentos de que o fundo usufruiria se mantivesse aqueles activos.
  5. A CGD sai igualmente fragilizada em termos financeiros, dado que é obrigada, para fazer face à irresponsabilidade financeira do patrão, a desembolsar 1.000 milhões de euros, para o que terá certamente de se endividar, no todo ou em parte, junto dos mercados monetários, provocando com isto subidas nas taxas de juro. É certo que ficará com activos que lhe irão gerar rendimentos, mas nada garante que o spread obtido (diferença entre os rendimentos da aplicação e os custos do financiamento) seja positivo ou que a Instituição não dispusesse de alternativas mais rentáveis (vg., a concessão de crédito).
  6. Para além do impacto acima referido na conta de exploração da CGD, esta poderá ainda ver comprometido o cumprimento das regras de equilíbrio financeiro definidas pelo Banco de Portugal, designadamente ao nível do chamado rácio de solvabilidade. Em termos simplistas, este rácio, aplicável às instituições de crédito, define o nível mínimo de cobertura dos activos por capitais próprios, que o Banco de Portugal estabeleceu em 8%. Um aumento repentino dos activos no montante de 1.000 milhões de euros poderá, em teoria, colocar o rácio de solvabilidade da CGD abaixo daquele limiar, o que obrigaria a um aumento de capital, só possível de ser subscrito pelo seu único accionista, o Estado. Verificando-se este cenário, a solução será a expedita e tradicional "fuga para a frente": o aumento será registado ainda no corrente ano, mas a realização do mesmo ocorrerá apenas em 2005, já na vigência de um outro orçamento. Em princípio, não haverá necessidade de recorrer a este "esquema" (o rácio de solvabilidade da Caixa ascendia a 8,7% em finais de 2003), mas a Administração da CGD ficará naturalmente com uma margem de manobra bem mais reduzida na gestão corrente ou estratégica.

Dito isto, poder-se-á facilmente concluir que teria sido bastante mais racional o Estado ter efectuado a venda de imóveis, como tinha previsto. Para além de o Estado possuir imóveis em excesso, a venda de alguns libertá-lo-ia das despesas correntes que eles sempre acarretam. Pelos vistos, um governo de gestão não possui competências para alienar património imobiliário mesmo que excessivo, mas tem-nas de sobra para pôr em causa o equilíbrio financeiro de uma Instituição e as reformas dos respectivos trabalhadores. Já se começa a ver o efeito da irracionalidade que constituiu a dissolução da Assembleia da República.

Este exemplo é, por outro lado, bem elucidativo da situação de esgotamento a que chegou o para muitos sagrado e intocável Estado Social, ao ponto de ele próprio pôr em causa um dos seus principais fundamentos: o direito dos cidadãos a uma reforma condigna. Mais do que a competência dos anteriores, actual ou futuros ministros das finanças, devem ser sobretudo questionadas as obrigações que ao Estado são impostas pela Constituição a qual, se integral e rigorosamente cumprida, levaria a que as despesas públicas atingissem 70 ou 80% do PIB. Se nada for feito, para lá caminharemos alegremente, empobrecendo cada vez mais.

Urgem uma nova Constituição e um novo regime, uma IV República!