25.1.05

Ricardo's difficult idea

Já o meu espanto foi enorme quando vejo CAA, do "Blasfémias", a escrever um texto contra a abertura comercial à China. Os blasfemos representam o pensamento liberal da blogoesfera. Ultra-liberal nalguns casos. Quando até um liberal se revela contra o livre comércio internacional... Ou os princípios económicos são ainda mais difíceis do que julgava, ou estão errados. Inclino-me para a primeira hipótese.


Num post já referido pelo João Miranda, e cuja leitura recomendo, Luís Aguiar Conraria faz uma interessante defesa do comércio livre.

Interessante em primeiro lugar porque creio que ajuda a compreender a importância de conhecer as leis económicas básicas (as quais, não obstante serem básicas, não são necessariamente fáceis de entender...) para discutir com um mínimo de fundamentação adequada a questão do comércio internacional.

Interessante também, em segundo lugar, porque não sendo LAC um liberal (ou, pelo menos, não se revendo integralmente nas posições do liberalismo clássico), acaba, creio eu que em grande medida devido à sua sólida (tão sólida quanto possível para um não-austríaco, se me é permitida a provocação...) formação económica, por ter uma posição de princípio bem mais favorável ao livre comércio do que, por exemplo (mas não é caso único), o meu amigo CAA que, afirmando-se liberal, falha quanto a mim gravemente ao equacionar esta questão.

Finalmente, em terceiro lugar, creio que o texto do LAC é interessante por levantar um problema (recorrendo para o efeito a um artigo de Krugman) que os economistas geralmente ignoram e que tem a ver com o facto de noções como a de vantagem comparativa ricardiana serem, efectivamente, de muito difícil apreensão para quem não tem sólida formação económica (o que não quer dizer que seja um conhecimento reservado a economistas). Parece-me que parte do problema reside no facto de a noção de vantagem comparativa, uma vez apreendida, parecer natural, quase óbvia, o que leva muitos economistas a não levarem em conta que para a esmagadora maioria dos leigos esse é um conceito profundamente contra-intuitivo (em certo sentido, até uma teoria suspeita...).

Naturalmente que há argumentos teoricamente pertinentes (o que não significa que não os considere refutáveis) para contestar as vantagens do livre comércio mas o ponto fundamental é que, para a generalidade dos economistas (e leigos com conhecimentos de economia), a teoria ricardiana das vantagens comparativas gera, no mínimo, uma forte presunção a favor do comércio livre.

No caso dos liberais, às razões puramente económicas a favor do comércio livre, somam-se as razões filosóficas e políticas que derivam da concepção liberal clássica dos direitos individuais. A ideia de que os indivíduos são titulares de direitos e que esses direitos funcionam como restrições às acções de terceiros (incluindo os Estados) sobre eles é central na mundividência liberal. Decorre daqui que não pode ser considerado lícito, numa perspectiva liberal, que um Estado limite, com o objectivo de promover objectivos de engenharia social sobre um outro Estado, o direito de os seus cidadãos efectuarem livremente trocas comerciais com quem muito bem entenderem.

A que título poderá um liberal considerar legítimo que um Estado limite a liberdade de comércio dos seus cidadãos com o objectivo de induzir mudanças no regime político de um outro Estado? Mais do que por considerar que a eficácia das tarifas, embargos ou outras limitações ao comércio na indução da liberalização de regimes é muito duvidosa (veja-se, por exemplo, os casos de Cuba e do Iraque), o proteccionismo apresenta-se como repugnante do ponto de vista liberal por atribuir ao Estado o poder de interferir indevida e arbitrariamente na esfera dos direitos individuais.

Note-se que, numa situação de comércio livre, ninguém é obrigado a importar ou exportar bens para um determinado país. Todos quantos considerem que uma qualquer razão justifica que não consumam bens de determinada origem e/ou não exportem bens para determinado destino são livres de agir segundo essas razões. O que é incompatível com uma postura liberal é pretender limitar a liberdade de terceiros apenas com base nessas razões.

Os argumentos liberais a favor do comércio livre são assim simultaneamente de natureza económica e moral, facto que provavelmente ajuda a compreender o motivo de essa ser, desde sempre, uma temática onde as posições liberais clássicas são claras e inequívocas. Acresce ainda que, no plano das relações internacionais, como bem realçou Montesquieu, a paz é um efeito natural do comércio, já que quando as nações se tornam reciprocamente dependentes (ao interesse de comprar corresponde o interesse de vender e vice-versa, como se compreende através da ideia difícil de Ricardo) gera-se uma união baseada nas necessidades mútuas. Sendo certo que o comércio livre não é garantia de paz, é provavelmente a medida mais eficiente para conduzir a esse objectivo, a que um liberal também não deve ser indiferente.

Por tudo isto, parece-me inequívoco que, numa perspectiva liberal clássica, não há espaço para ambiguidades na defesa do comércio livre como objectivo global, podendo, quando muito, haver discussão quanto aos melhores meios para o atingir (e é a esse nível que deve ser enquadrada, por exemplo, a reflexão sobre o papel e actuação da OMC).

Invocar a desejabilidade de limitar o livre comércio internacional para promover mudanças de regime em países terceiros poderá ser defensável a partir de posições socialistas, sociais-democratas, liberais-sociais ou de direita não liberal, mas não o será certamente a partir de uma posição liberal clássica.