17.12.06

é um despotismo sem rosto


Os cidadãos sentem que a sua vida privada está ameaçada, que todos os dias podem ser abusados, restringidos, observados, escutados, controlados, frustrados, irritados, ameaçados; sentem que a todo o momento alguém lhes pode entrar pela casa dentro e devassar a sua vida privada até ao mais ínfimo detalhe, e têm a certeza que essa pessoa, quando um dia chegar, será alguém que o faz a título oficial e na qualidade de funcionário do Estado.###

Os cidadãos ouviram falar em despotismo da maioria e sentem que ele existe - sentem-no na sua vida diária. Porém, nunca o tendo vivido, olham em volta e não vêem um déspota. Fixam-se na figura do primeiro-ministro, dos ministros, do presidente da república, dos deputados da nação. E vêem homens e mulheres semelhantes a eles, pessoas oriundas da classe média, pessoas que são, na realidade, o espelho do que eles próprios são - pessoas perfeitamente normais.

Porém, a razão porque não encontram o déspota é porque estão a procurar no sítio errado. O despotismo da maioria não se exerce através de um homem ou de um grupo restrito de homens. Pelo contrário, o despotismo democrático, tal como a maioria que o legitima, é um despotismo sem rosto e que se exerce através dessa massa anónima de pessoas que têm o poder para realizar uma inspecção, conceder uma licença, cobrar um imposto, autuar um condutor, impôr uma norma, proibir um produto, registar uma empresa, aprovar um projecto, conceder um subsídio, fazer cumprir um contrato, atribuir um alvará. O despotismo da maioria exerce-se através da administração pública do Estado democrático.

Ao contrário do despotismo de um homem que é exercido a intervalos, por vezes de forma brutal, e quase sempre sobre um núcleo restrito de cidadãos, o despotismo da maioria é permanente, detalhado, irritante, minucioso, anónimo e atinge todos os cidadãos de forma igual. Ele não tem em vista matar ninguém, antes visa roubar a todos a sua individualidade: ele penaliza, desmotiva, exaspera, desespera, irrita, desencoraja, divide, desincentiva até que cada homem, levado ao limite de si próprio, desista de ser um homem, e se sinta plenamente igual aos outros - totalmente indefeso, impotente, incapaz de reagir, desespiritualizado, nú perante o poder supremo e absoluto do Estado.

Um homem decide lançar um negócio de restauração. Fez o investimento, arrendou um espaço e contratou os empregados. Mas ele não pode começar o negócio antes que lhe sejam feitas uma multiplicidade de inspecções e concedidas licenças e alvarás. Tudo demora uma eternidade. Passou mais de um ano, e as licenças não estão todas concedidas e faltam ainda os documentos de algumas inspecções. E ele a pagar a renda do espaço, os salários dos empregados, os painéis publicitários. Com o desespero próprio de quem está perto da ruína, decide abrir o restaurante ao público. Mas ele não vai conseguir dormir porque sabe que a todo o momento lhe podem fechar o restaurante, mover-lhe um processo administrativo ou mesmo criminal e o seu nome aparecer nos jornais. Será a ruína financeira e pessoal.

Uma pessoa compra uma casa antiga para a mandar restaurar e vir a habitá-la. Porém, não pode iniciar as obras, sem que uma multiplicidade de autoridades administrativas, desde a câmara municipal ao serviço de abastecimento de águas, lhe aprovem uma multiplicidade de projectos e lhe concedam uma multiplicidade de licenças. O tempo vai passar e ela vai dar-se conta que, quem manda na casa e quem vai decidir qual o tipo de caixilhos, de portas e de janelas e se a casa poderá ou não ter um jardim, não é ela, mas uma massa anónima de burocratas, engenheiros, políticos, arquitectos que trabalham na câmara e numa grande multiplicidade de outros serviços administrativos.

Um cidadão recebe em casa uma notificação da brigada de trânsito da GNR, intimando-o a pagar uma coima de cento e vinte euros porque no dia 17 de Setembro de 2006, às 9 horas e 41 minutos, circulava na A1 ao quilómetro 138,7 à velocidade de 162 quilómetros por hora; a notificação explicita que a infracção não foi presenciada pelo autuante, e que a velocidade foi medida por uma radar certificado por outro departamento do Estado. Como pode ele defender-se desta imputação, como pode ele lembrar-se a que velocidade efectivamente circulava ao km 138,7 da A1 no dia 17 de Setembro, às 9 e 21 da manhã? E ainda que se lembrasse - uma impossibilidade prática -, com quem vai ele argumentar, com o radar? A impotência é total.

A administração fiscal decide que um contribuinte tem de pagar um imposto que ele, de facto, já pagou. O cidadão protesta, faz requerimentos e mais requerimentos para que o erro seja reconhecido e corrigido, sem obter resposta. O Fisco persiste no erro e ameaça-o que, senão pagar até ao dia tal, ser-lhe-ão penhorados o vencimento e as contas bancárias. O cidadão acaba por se render, e paga outra vez aquilo que já pagou, ainda por cima com juros e com coimas. E, não obstante, passados quinze dias, o seu patrão e o seu banco recebem ordens da administração fiscal para lhe penhorarem o vencimento e a conta bancária. Quantos requerimentos, quantos meses vão ser necessários para levantar as penhoras? E os danos que o contribuinte sofreu e a vergonha por que passou? E quem, na administração fiscal, responde por este abuso? A resposta é: ninguém.

"São símbolos da gastronomia. São tradicionais. São deliciosos. E são ilegais" titula O Público hoje na primeira página. E acrescenta: "Proprietário de um monte no Alentejo, que produz e vende carne de porco preto, presunto e pão. Tudo ilegal, mas não faltam clientes, desde consumidores exigentes a grandes mestres de cozinha".