22.6.04
VIVA A CONSTITUIÇÃO EUROPEIA!
Meu caro CAA,
Li, com a atenção de sempre, o que escreveste a propósito do caminho ultimamente percorrido pela Europa comunitária, que consideras gravemente atingida pela aprovação recente do Tratado Constitucional, no Conselho Europeu de Bruxelas. Não concordo com o essencial do que dizes, embora não negue que o que dizes possa ser politicamente sedutor.
Desde logo porque, como bons liberais que nos consideramos, nos devemos rever, por convicção e princípio, no constitucionalismo político, que foi, em boa parte, filho dilecto do liberalismo clássico. As constituições políticas garantiram dois aspectos essenciais à liberdade: a separação de poderes e os direitos fundamentais dos indivíduos. O artigo 16º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamou-o inequivocamente: «Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação de poderes, não tem Constituição».
Ora, que pior ameaça pode ser concebida, para as nações e os cidadãos que vivem na União Europeia, do que não conhecerem com clareza o seu texto constitucional, ordenador e limitador de um poder político que a União possui inequivocamente e onde, em muitas matérias é, desde há muitos anos, a última autoridade? Que jurista, para não dizer que cidadão avesso ao mundo do Direito, domina com facilidade a complexidade normativa estruturante da União? Que continua fundada nos Tratados instituidores de Paris (1951) e de Roma (1957), no Tratado de Fusão (1965), no Acto Único Europeu (1986), no Tratado da União Europeia (1992), no Tratado de Amesterdão (1997), no Tratado de Nice (2001), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), na jurisprudência constitucional do Tribunal de Justiça e em inúmeras praxes e costumes de idêntico valor? Sabias, por exemplo, que a atribuição de dois Comissários aos considerados «cinco grandes» não está consagrada em nenhum Tratado? Que é, no fim de contas, uma antiga praxe comunitária, um verdadeiro consuetudo praeter legem, que nela se foi gerando? Sabes dizer-nos, com clareza, que matérias competem à União e aos Estados? Em regime de exclusividade e de concorrência? Será que a maior parte dos nossos ministros, nos últimos vinte anos, o saberia?
Pelo que, se mais não houvesse, a simplificação normativa que comporta a aprovação do Tratado Constitucional é um importantíssimo reforço das garantias dos cidadãos, da transparência política (tão arredada da vida comunitária) e do princípio democrático.
Mas não só.
Não se pense que a referida constituição resulta de um momento constitucional fractal, citando Gomes Canotilho, revolucionário, como sucedeu na generalidade das constituições oitocentistas e, desgraçadamente, da nossa última constituição. Ela é, pelo que tive oportunidade de verificar, o repositório do essencial do acervo comunitário, que tem vindo a ser gerado ao longo de décadas, por milhares de homens e de mulheres, com avanços e retrocessos, como é próprio das sociedades onde vivem em liberdade homens livres. O facto de codificar e salvaguardar essa verdadeira tradição comunitária, o «acquis communautaire», é importantíssimo, porque ele é o espelho de soluções experimentadas e verificadas ao longo de décadas por milhares de homens e mulheres. Do nosso mercado político e social das últimas décadas, pelo menos.
Com certeza que o novo Tratado comportará alterações aos anteriores. Sem dúvida que o poder dos mais fortes sairá reforçado. Mas, sem qualquer reserva, poderei garantir-te que o poder dos mais fracos é consideravelmente mantido, quer na representação institucional, quer nos procedimentos de decisão. O que, tendo em vista a ampliação do espaço comunitário, consiste numa valorização e num reforço de poder real.
Os mais fortes vão mandar mais? Sem dúvida! Mas os mais fracos, mandam mais também. Em contrapartida, pergunto-te eu: qual era o papel de Portugal no mundo antes da integração na CEE? O que «riscámos» nós na comunidade internacional durante o século XX, mesmo quando tínhamos o Ultramar? Que força poderíamos opor aos grandes blocos? Basta olharmos para o que sucedeu ao referido Ultramar, para termos uma resposta concludente... O mesmo se poderá dizer quanto à expressão do nosso poder económico: modesto dentro de fronteiras, sempre muito condicionado por um salazarismo socialista que nos não deixou tentar em África outros «Brasis», nas nacionalizações trágico-cómicas do 25-A, em que as «fábricas eram do povo», as «terras eram do povo», «os bancos eram do povo». Há muito que não valemos nada economicamente: na Iª República falimos; no 25 de Abril tivemos de pedir auxílio aos americanos para não voltarmos à bancarrota. Hoje em dia, numa economia globalizada e que não comporta «explorações de quintal», estaríamos à mercê completa dos nossos vizinhos espanhóis, que não nos deixariam escapar como a sua Selecção deixou fugir o apuramento para os quartos-de-final...
As vantagens da integração comunitária, para Portugal e para o Mundo são, a meu ver, claríssimas. Assim não fosse, não teríamos à porta uma imensa bicha de países a querer entrar. Já são vinte e cinco. Poderão chegar aos quarenta e cinco. Quase tantos Estados, quantos os que formam os Esatdos Unidos da América que, na sua imensa diversidade, se conseguem entender e proguedir em conjunto.
Ela garantiu, entre outras coisas, a paz aos países que a integraram, tantas vezes violada na Europa do século XX. Ainda há pouco, na extinta Jugoslávia. Se as nações que a compunham fizessem parte da União, não duvides que o que lá sucedeu teria tido um destino diferente. Como, desde 1951, não voltaram a conflituar entre si os alemães, os belgas, os franceses e os italianos. Porque têm mais que fazer: têm uma possibilidade de melhorar as suas vidas, de progredirem economica e socialmente, e de acederem a bens económicos fundamentais em grande escala, sem terem de conflituar. A construção comunitária aplicou um velho princípio do liberalismo clássico: aproximou os povos e os indivíduos pela liberdade económica e pelo progresso e bem-estar que ela traz.
Mas, em último lugar, a meu ver, a sua maior conquista foi exactamento aquilo que consideras mais grave: a desvalorização da política. Eu, ao contrário de ti, acho que a política tem de ser exercida suavemente. Com parcimónia e, diria até, educação. Julgo que a existência de «salvadores das pátrias» e de «carismáticos» é um sintoma de subdesenvolvimento e atraso dos povos. Só necessita de ser salvo quem está em perigo. A existência de líderes que nos massacram aos berros a quererem vender as suas ideias para o nosso bem-estar, sempre me incomodou. Prefiro «cinzentões» que tratem do governo como uma empresa que cobra receitas e as aplica sensatamente, que nos prestem contas escorreitas, e nos deixem, o mais livremente possível, interagir, do que tribunas pejadas de «De Gaulle's» (o tal da «Europa das Pátrias») preocupados com o nosso destino, do qual tratam, uma vez conquistado o poder, como melhor lhes convém. Não me parece, meu caro CAA que os «condutores de multidões», os políticos que nos entusiasmam e falam ao espírito e ao coração, sejam um sintoma de civilização. Pelo contrário, são os resquícios dos tempos em que a força do direito era o direito da força, e em que ganhava quem assim se impusesse. Como liberal, não aprecio por aí além os chefes, as personagens míticas e os homens providenciais. De resto, Portugal foi, desde a sua fundação, assolado por «carismáticos» que nos querem salvar e dar a felicidade na Terra. Os resultados estão à vista. Talvez gente mais modesta, com objectivos mais humildes, faça no governo o que tem a fazer, e nos deixe a nós, indivíduos, livremente estabelecer, uns com os outros, os objectivos das nossas vidas.