Só quem não tem assistido a debates por esse país fora - e não apenas àqueles que têm passado nos media, onde o "Não tem ostentado uma falsa moderação - é que pode ignorar que, na verdade, o "Não" de César das Neves não é minoritário: aquilo que ele diz é o que pensa o "Não" profundo, ele é a regra e não a excepção.
Mas quando a vergonha é um bem escasso, qualquer ideia vale desde que sirva para convencer os mais incautos. A uma semana do referendo, o "Não" tira da cartola uma proposta que desmente quase tudo o que disse e fez nos últimos anos: «A Plataforma "Não Obrigado" defendeu medidas "ressocializantes" para as mulheres que pratiquem um aborto, rejeitando o seu julgamento, criando-lhes um projecto de vida e evitando que voltem a recorrer à Interrupção Voluntária da Gravidez».
Pois é. O aborto continua clandestino, mas ressocializa-se (note-se que, por definição, este fim já integra a sanção penal).
Quem tem dinheiro vai a Espanha e quem não pode fá-lo cá, às escondidas, arriscando a saúde e a vida, mas ressocializa-se.
A IVG manter-se-á como crime, as polícias continuarão a investigar, o ministério público a acusar e os Tribunais a julgar, mas ressocializa-se.
Portugal permanecerá deslocado do espaço cultural e legal que diz querer ser seu, mas nós é que sabemos, nós somos originais e ensinamos todo o resto do mundo a que juramos pertencer, porque aqui ressocializa-se.
Ressocializar é um verbo com alguma capacidade de conjugação comicieira a 8 dias da votação. Mas qualquer um medianamente informado - vote sim ou não - sabe bem que se o "Não" ganhar o verbo que persistirá será outro: penalizar! Precisamente o mesmo que esta gente exigiu, sem vacilar, desde há 23 anos.