8.2.07

uma perversão



Provavelmente, um dos argumentos mais fortes da campanha do Sim é o argumento da liberdade da mulher a dispôr do seu corpo. Este argumento tem produzido resultados inesperados. Primeiro, tem levado muitas pessoas que genuinamente acreditam no valor da liberdade a associar-se a outras que, até aí, consideravam inimigas da liberdade. Segundo, tem tornado a extrema-esquerda a líder e a campeã do valor da liberdade. Terceiro, e mais importante, tem deixado muitas pessoas perplexas e indecisas, as quais argumentam que se a liberdade é isto - a possibilidade de cada um fazer aquilo que quer sem ter de prestar contas a ninguém - então, se calhar, a liberdade não é um valor muito bom.###

Foi o liberalismo do século XX, liderado principalmente por autores de tradição judaica, que conferiu à liberdade o estatuto de um instrumento que se destinava prioritariamente a permitir às pessoas a prossecução de fins próprios ou egoístas, e a utilização que é feita do argumento da liberdade no debate sobre o referendo insere-se precisamente nesta linha de pensamento. A liberdade permite à mulher fazer aquilo que quer com o seu corpo, incluindo o aborto.

Este liberalismo de inspiração judaica, segundo o qual a liberdade é um instrumento posto à disposição das pessoas para a prossecução de fins próprios ou egoístas, teve algum sucesso intelectual na esfera económica e não é, por isso, surpreendente, que a maioria dos seus mais destacados cultores tenham sido economistas. Fora da esfera económica, porém, o liberalismo do século XX foi um desastre em termos de aceitação social. E foi um desastre porque numa cultura que é sobretudo de inspiração cristã, as pessoas ressentiam naturalmente que a liberdade servisse principalmente para satisfazer fins egoístas. Se a liberdade servia sobretudo para favorecer o egoísmo - assim argumentavam - então a liberdade não era um valor a ter em grande conta.

E tinham razão, porque na tradição cristã a liberdade tem uma interpretação muito diferente daquela que lhe atribui a tradição judaica. A primeira liberdade reclamada pelos primeiros cristãos - nos três séculos que precederam Constantino em Roma - foi a liberdade de consciência religiosa, a liberdade para adorarem o seu Deus e poderem cumprir as suas obrigações para com Ele.

Como observou Lord Acton, na tradição cristã, a liberdade religiosa foi a primeira e a mãe de todas as liberdades. E o sentido essencial da reclamação dessa liberdade por parte dos cristãos primitivos, não foi o da prossecução de quaisquer fins egoístas, mas antes o de só assim eles poderem cumprir os seus deveres de culto para com o seu Deus. Por isso, na tradição cristã, a liberdade é um valor importante porque, acima de tudo e em primeiro lugar, permite a cada um cumprir as suas obrigações - e não, como na interpretação judaica, porque permite mais facilmente a cada um prosseguir os seus próprios interesses.

E, na realidade, nós reconhecemos liberdade aos pais para que eles cuidem dos filhos, não para que eles os abandonem (embora alguns possam utilizar a liberdade para este último fim). Nós reconhecemos liberdade de julgamento profissional aos médicos para que eles curem as pessoas, não para que eles as matem (embora alguns possam utilizar a liberdade para este último fim). Nós reconhecemos liberdade de actuação aos governantes para que eles cuidem dos interesses de toda a população, não para eles que cuidem dos seus próprios interesses privados (embora alguns possam utilizar a liberdade para este fim). Nós reconhecemos liberdade contratual às pessoas para que elas cumpram os contratos, não para que elas não os cumpram (embora algumas possa utilizar a liberdade para este fim).

Na tradição cristã, a liberdade individual está direccionada para os outros (e, em última instância, para Deus) - e não para si próprio, como na tradição judaica. Na tradição cristã, a liberdade de cada homem é importante porque só assim ele pode servir os outros, e não porque assim ele pode melhor servir-se dos outros ou a si próprio.

Por isso, na tradição cristã, é reconhecida às mulheres a liberdade para disporem do seu corpo. Mas esta liberdade é-lhes reconhecida para que elas possam ter filhos, não para que elas pratiquem o aborto, embora algumas possam utilizar essa liberdade para este último fim. Porém, se o fizerem, é preciso salientar que não foi para isso que lhes foi reconhecida a liberdade. E que o argumento da liberdade que é utilizado na campanha do aborto representa uma perversão do verdadeiro valor da liberdade, tal como ele é entendido pela nossa cultura.