27.10.05

As Presidenciais: mitos, desejos e realidades

Em jeito epistolar e na sequência desta posta:

Meu Caro CAA, sendo tu um homem de profunda fé (sempre afirmei a tua extrema religiosidade), tens no entanto a dita desfocada para coisas e entes muito terrenos, o que só te pode causar enormes desilusões e dolorosas reconversões, factos a que temos aliás assistido.

Como sabes, desde há muito que não acredito nas presidenciais, que se me afiguram uma perfeita inutilidade no sistema que temos. Tenho vindo sucessivamente a abster-me, na convicção de que é totalmente irrelevante quem ocupa o cargo: fará fretes, distribuirá prebendas ou será factor de instabilidade para governos de cor diferente da sua, via presidências abertas, magistraturas de influência ou discursos redondos no 25/4. Substantivamente, nunca resolverá coisíssima nenhuma, porque um sistema de "semis", que não é carne nem peixe, veda-lhe qualquer intuito reformista.

Por outro lado, sendo embora antigo o meu cepticismo quanto aos figurões da política, deixei definitivamente de acreditar nos ditos "homens sérios" depois da recente desilusão com o nosso "amigo" Rui Rio, cujos contornos bem conheces. Muito menos acredito nos seres mitificados que se nos apresentam como homens providenciais e salvadores da pátria, chamem-se eles Soares ou Cavaco.

A este propósito, não percebo o fascínio que desde há muito vens manifestando pelo Cavaco. Só agora te apercebeste que ele é mais um elemento do sistema? Se dúvidas algumas eu tinha, fiquei totalmente esclarecido no almoço do Clube Via Norte em que também participaste. Se bem te recordas, na altura inquiri-o sobre a inconveniente "bicefalia" do nosso sistema político e a instabilidade potencial que lhe estava inerente, daí advindo conflitos entre o Governo e a Presidência que ele próprio, de resto, sofreu mais que ninguém. Lembras-te certamente da sua resposta redonda e politicamente correcta: que isso era uma questão sobre o regime político (e era!), que não se justifica alterar, que o sistema até está equilibrado (!!!), as competências dos dois órgãos estão correctamente definidas, está estabelecido um correcto mecanismo de checks & balances (!!!), etc., etc.. Sintomático!...

O discurso que ele fez de apresentação da candidatura, de conteúdo exactamente igual ao do Soares - "vocês conhecem-me", "eu conheço o País e o mundo", "sei do que a Pátria necessita", "aqui estou eu para vos salvar" e outras insanidades do género - só veio confirmar, a quem ainda não soubesse, que ele não pretende mudar estruturalmente nada. E ficas tu indignado com "peças acessórias" como o Eanes? E as outras? Veja-se o mandatário, escolhido porque o tinha sido de Sampaio ou a mandatária da juventude, porque será, ao que consta, uma diva do "faduncho" dito renovado. Tudo a remeter para o tradicional consensualismo e tentativa de fazer a maior das abrangências, de agradar a gregos e troianos. O Eanes não é melhor nem pior do que toda a restante entourage, cujo único objectivo é mostrar que mudará algo para, de facto, se manter o eterno e sistémico status quo.

Vistas as coisas na óptica mais egoísta e simplista do eleitor comum, o que é que pessoas como nós devem a Cavaco? Eu não consigo lobrigar toda aquela auréola de grande reformador e artífice dos anos dourados que unânimemente lhe pespegam. Claro que o homem tem méritos. Consegue situar-se, ou criar a imagem de que se situa, em nível superior ao da rasquice dos aparelhos partidários e, acima de tudo, denota um grande calculismo e uma excelente capacidade analítica e prospectiva dos indicadores económicos. Foi assim que, prevendo a borrasca que se aproximava, se resguardou em 1981 recusando integrar o governo Balsemão; foi assim que em 85 viu chegada a sua hora, cheirando a próxima bonança e adivinhando o melhor dos mundos com a conjugação desta com a enxurrada de fundos comunitários que se seguiriam à nossa adesão. As grandes reformas? Elas foram fundamentalmente pressionadas por fora e quase todas resultado da adesão à CEE. Tivesse sido Constâncio a ganhar as eleições em 1987 e o crescimento económico teria sido idêntico ou semelhante, a revisão constitucional e a reforma fiscal seriam feitas, ocorreria a concessão de canais televisivos aos privados, desencadear-se-iam as privatizações e o processo de adesão à moeda única. Claro que também se lançariam as sementes do actual "monstro", concedendo-se idênticas benesses à função pública e se fariam investimentos faraónicos do tipo CCB e Expo-98. Mas talvez o Estado não tivesse sido tão intervencionista no desenrolar de algumas privatizações que, conjugadas com os mega-investimentos públicos na capital, redundaram na concentração quase que exclusiva dos centros de decisão económicos em Lisboa e na completa "desertificação" do resto do país. E, muito provavelmente, Constâncio não teria pronunciado aquele libelo alarmista contra a Regionalização que a terá morto, talvez em definitivo. Jamais perdoarei esta a Cavaco. E tu?

Tudo isto, meu Caro CAA, para te dizer que de nada vale endeusarmos determinadas figuras por supostos grandes feitos. Muito raramente a sua actuação é determinante na evolução da economia e da sociedade, muito embora eles as pretendam sempre moldar, com resultados geralmente contrários aos pretendidos. Não é portanto o seu voluntarismo que lhes faz a fortuna, mas a sorte de "reinarem" numa conjuntura económica favorável, não obstante a eterna e oportunista tentativa de daí retirarem louros pessoais. É sobretudo este oportunismo que fará depois a sua desgraça numa conjuntura adversa, para a qual pouco ou nada contribuíram. Veja-se o caso paradigmático de Bush pai (it?s the economics, stupid!) que até nem foi mau presidente.

Em suma, e voltando ao tema das presidenciais, dir-te-ei que as próximas encerram uma oportunidade única que levarão a que, desta vez, não me abstenha: a possibilidade de, com duas simples cruzes, contribuir para abater dois mitos, Soares na primeira volta e Cavaco numa hipotética segunda. E Alegre é o "instrumento" disponível para um tal "miticídio".

Mas Alegre a presidente, questionarás tu horrorizado? E porque não? O homem não tem sarna, é poeta, o que lhe assegura alguma superioridade estética e, nas actuais circunstâncias, não tanto por convicção mas sobretudo por despeito, é o candidato que temos mais anti-sistema e aquele que, através da tal "magistratura de influência", mais poderá forçar uma alteração do regime. Pessoalmente, não acredito que o faça e o mais provável é que, mais uma vez, nada mude. Mas será obrigatório termos um "super" ou um "mega" na presidência e que ela seja vedada a uma pessoa normal? Se analisares o leque de candidatos que nos é apresentado, constatarás facilmente que o Alegre e o Jerónimo são os que mais se aproximam do cidadão comum, os que aparentam ser mais genuínos. Não estará um cidadão comum, se desligado dos grandes interesses e corporações, mais ciente do que deve mudar do que uma pretensa elite iluminada e beneficiária do sistema? A este propósito, está interessantíssimo o paradigma dos candidatos que o Rui abaixo elenca, embora me pareça que De Gaulle não o será tanto de Cavaco, mas dos seus apoiantes. E qual a figura que intuitivamente nos gera mais empatia pela simplicidade e bom senso? Obviamente, Havel!!!...

Em síntese, meu Caro CAA, aconselha-te este teu Amigo a que redirecciones a tua fé para questões mais transcendentais e que não acredites na descida dos deuses do Olimpo para gerir a coisa terrena, que ficará mais bem entregue aos simples mortais. Mas não serei eu, pobre incréu, que te ensinará a encontrares o "caminho". De bom grado assumirá essa altíssima missão o nosso venerável e top-rated Consultor...