28.6.06

acerca do liberalismo e relações internacionais

O Bruno Cardoso Reis envolveu-se (sem se querer envolver...) numa polémica sobre o que poderá eventualmente ser uma (ou várias) visão liberal das Relações Internacionais. Com essa intenção parametrizou as posições dominantes nessa disciplina científica nas Escolas Clássica (ou realista), Neo-Clássica (ou neo-realista), Liberal e Neo-Liberal (tratando-se, aqui, do «liberalismo» norte-americano e não propriamente o liberalismo clássico), e nalguns autores com maior expressão, entre eles os inevitáveis Morgenthau, Keohane, Nye, Waltz e Wendt. Termina com algumas conclusões interessantes, a saber: que o Estado é um resultado inevitável da actividade humana; que a cooperação internacional é um pressuposto da liberdade de comércio; que o federalismo é um fundamento do liberalismo, e, por fim, que o realismo político não pode prescindir do Estado absolutista e do mercantilismo económico. Embora reconheça que algumas destas conclusões denunciam um esforço significativo de aproximação ao liberalismo por parte de uma certa esquerda inteligente, de que o Bruno Cardoso Reis é, sem dúvida, um dos melhores intérpretes, outras são motivo de desilusão. Vejamos porquê.

Principiando pelo que parece pacífico, eu diria que efectivamente o liberalismo deve pugnar pelo federalismo como forma de organização política do Estado contemporâneo, admitindo que, pelo menos por enquanto, não parece possível substituir o modelo estadual por outro que seja mais conciliável com a ideia de liberdade. Se por federalismo entendermos o que Proudhon entendia, isto é, a máxima fragmentação do poder político repartindo-o por níveis de decisão mais próximos das comunidades sociologicamente reais, em necessária consonância com o princípio da subsidiariedade, aí estaremos de acordo. Muitos liberais foram assumidamente federalistas, não sendo nunca de esquecer que Lord Acton considerou-o o processo mais adequado para conter e civilizar a soberania estatal, enquanto Hayek defendeu-o como o melhor caminho para assegurar a paz na Europa Ocidental do pós-1945. Porém, se pelo federalismo quisermos a instituição de um super-Estado, com poderes centrais transferidos das partes que o compõem para um novo Estado federal, nesse caso parece que o federalismo não será um modelo liberal de distribuição do poder. No plano internacional, pode haver federalismo sem que exista um Estado federal, sendo que a União Europeia é disso (pelo menos por enquanto e espera-se que por muito tempo) um bom exemplo. Mas, para isso, torna-se necessário admitir a partilha, ou a divisibilidade, da soberania, ideia que repugna às Escolas Realista e Neo-Realista das Relações Internacionais, que continuam a ver no Estado soberano o paradigma dominante.###
A ideia de «cooperação» é, ela mesma, um pressuposto do liberalismo, seja entre os indivíduos, seja entre as suas formas de organização privadas e públicas. Quando os liberais falam em «mercado-livre» e na «mão invisível» é precisamente na ideia de cooperação livre entre os indivíduos que estão a pensar. No campo das Relações Internacionais, considerando-as redutoramente apenas como aquelas que se estabelecem entre os Estados, sempre se poderá reconhecer que o estatismo e o nacionalismo foram e são responsáveis pelos conflitos entre os povos. Por isso mesmo, não nos devemos satisfazer com a ideia de cooperação internacional apenas como as relações entre os Estados. Há outros agentes que contam, que contam cada vez mais no mundo em que vivemos, entre eles, desde logo, os próprios indivíduos, que num contexto de globalização e de comércio livre tenderão com mais facilidade a preferir a paz à guerra, e a impor a primeira sobre a segunda aos seus governos. Os liberais clássicos, entre eles inevitavelmente Smith e Ricardo, sempre viram no comércio livre o modo mais eficaz de aproximar os indivíduos, os povos e as nações. Kant, que o Bruno muito oportunamente refere, e o seu individualismo cosmopolita, também. Essa foi, de resto, a via assumidamente liberal seguida por Monnet para encetar a construção comunitária e terminar com séculos de hostilidade entre os Estados europeus ocidentais.

Quanto à inevitabilidade do Estado e à exigência do absolutismo e do mercantilismo para os defensores do realismo político, é que já não podemos concordar. Embora admita o princípio da existência de uma organização política que seja contratualmente criada (o Estado ou outra coisa qualquer) para salvaguardar os direitos fundamentais dos cidadãos - propriedade, liberdade e (alguma) segurança -, ideia que encontramos em muitos liberais clássicos, desde logo em Locke, a refutação da inevitabilidade útil do expansionismo estatal, no exercício das funções de soberania política e económica (utilizando a dicotomia do Bruno do «absolutismo» e do «mercantilismo»), é que me parece ser o ponto mínimo de convergência liberal. Essa visão «state-centric» é perigosa e mereceu até a crítica de alguns neo-realistas (como Hoffman em relação a Morganthau), por a considerarem estática e perigosa. Neste último caso, por poder transformar-se num fundamento teórico com consequências práticas, que leve os Estados a enjeitarem qualquer tipo de cooperação. Cenário que esteve, aliás, muito em foco durante a guerra-fria. De resto, se por realismo político entendermos uma leitura neo-maquiavélica da realidade, teremos de concluir pela perversidade natural do poder, logo, pela necessidade da sua domesticação, como bem sugeria Bertrand Russel. Nessa medida, nada melhor do que o esvaziamento do poder dos Estados através de modelos de organização interna e externa que para isso contribuam, como o federalismo, da liberalização mundial do comércio e da livre circulação das pessoas e dos factores económicos, da massificação do turismo (talvez a verdadeira e única grande revolução do século passado), da transnacionalização dos grupos económicos e políticos, etc. Numa perspectiva "liberalmente realista", se a expressão me for autorizada, o que é sensato é pugnar pela diminuição e pelo encolhimento da soberania nas suas duas facetas tradicionais: a interna e a externa, esta última domínio por excelência das relações internacionais. O que não significa que se venha a cair na ingenuidade perigosa de acreditar que o mundo em que vivemos seja suficientemente tranquilo num contexto de liberalização global. Como em qualquer sociedade, também na sociedade internacional as regras de cooperação podem ser postas em causa, inclusivamente por meios de violência excessiva e de consequências imprevisíveis. Ainda dentro da mesma perspectiva liberal, será normal que os interessados - no nosso caso, os Estados que pretendam manter um padrão pacífico de existência - contratualizem com terceiros algumas garantias da sua segurança. No mundo ocidental desde, pelo menos, o fim da II Guerra Mundial, esse papel tem sido solicitado e, consequentemente, cabido aos EUA, que o exercem modicamente em troca de benefícios económicos e comerciais. De algum modo, pela exportação e comercialização do «american way of life» e a sua generalização quase à escala planetária. Que se saiba, permanece como uma das poucas leis universias das Relações Internacionais o facto de, até à data, não se ter registado nenhuma guerra entre dois países com restaurantes Mcdonald's. Por enquanto, o essencial - a paz - tem sido efectivamente salvaguardado e o preço pago não está inflacionado: a URSS foi desmantelada e não se concretizaram os receios de utilização por potências menores do seu vasto arsenal nuclear; a Europa Ocidental continua em paz; as ameaças do terrorismo global encontram-se, apesar de tudo, contidas. É certo que existem zonas consideráveis do planeta que mantêm conflitos regionais, principalmente em África e no Médio Oriente. Mas, nestes casos, é a soberania estatal que fala mais alto, exercida à margem de qualquer mediação internacional que intencionalmente esses Estados enjeitam. Não podem, por isso, queixar-se por ficarem entregues a si mesmos e à volúpia dos seus interesses.