21.11.07

Não deixe lá... (I)

«Um dia destes, Sócrates disparou-lhe: 'Nós andamos a falar tanto que você ainda fica desacreditado perante a sua família política...' E Durão terá respondido: 'Deixe lá... Isso já acontece agora...'» - para memória futura convém não esquecermos este pequeno trecho retirado dum reportagem da revista 'Visão' intitulada 'Sócrates privado'. Não sei o que mais será necessário para que se perceba que estas reportagens sobre o lado 'privado' dos homens públicos são o que de mais encenado e menos privado existe mas enfim deixemos esses considerandos para melhor ocasião. ###
Fiquemo-nos apenas pelo 'Deixe lá...' de Durão Barroso para José Sócrates. Um 'Deixe lá...' que pode querer dizer 'Não se preocupe que eu sei tomar bem conta de mim no que à minha família política respeita e à sua também'. Ou um 'Deixe lá...' de profundo fastio perante as mil questõezinhas que entretêm os comuns cidadãos da 'piolheira' e que ao contrário deles, Durão e Sócrates, nunca atendem o telefone a alguém que não seja primo, cunhado, patrão ou na mais cosmopolita das hipóteses a um promotor da TV Cabo ou ao presidente da distrital da zona.

Provavelmente ambas as interpretações serão válidas. E provavelmente vamos lembrar-nos delas dentro de algum tempo. Porque, ao contrário do que Durão Barroso declarou ao'Diário de Notícias', não é na política que o grau de imprevisibilidade é imenso. É sim na vida real que a imprevisibilidade é imensa. A política essa é muito previsível e quer Sócrates quer Durão Barroso se movimentam de modo a que um dia tenhamos de vir a escolher entre um e outro. Até lá vão-se descorporizando do país. Estão sempre em movimento e de tempos a tempos interrompem essa espécie de vertigem que os leva duma cimeira para mais um avião e um encontro com os 'grandes' para mostrarem o tal lado 'privado' que a 'Visão' acha que revela, esse lado que à falta doutra mais substantiva razão, nos sussurra com eficácia 'Deixe lá... que ainda vai votar em mim.'

O Tratado de Lisboa tornou-se o palco-pretexto por excelência não só para que Sócrates e Durão Barroso se 'revelem' mas também para que desse não-lugar que é a UE digam ao país o que proferido internamente lhes traria enormes custos. É este o caso das declarações de Durão Barroso sobre a invasão do Iraque. É assombroso que Durão Barroso tenha ido buscar o exemplo da sua bem sucedida carreira internacional para ilustrar a inocuidade dum assunto que afecta a vida de milhões de pessoas e duma crise diplomática que dividiu no essencial países como a França, a Grã-Bretanha e os EUA que desde a crise do Suez, em 1956, tinham percebido que podiam divergir no acessório mas que não se podiam enfrentar no essencial.

Este passar ligeirinho sobre a invasão do Iraque é uma forma de Durão Barroso encerrar um incómodo capítulo da realidade. O Afeganistão esse já nem suscita a curiosidade dos jornalistas e o entrevistado certamente agradeceu que se passasse a outro assunto. Sobre o Líbano nem uma palavra. E do Kosovo fala Durão Barroso não tanto porque tema que se volte a combater no meio da Europa mas sobretudo porque Putin se impôs como interlocutor incontornável.

Mas se não falarmos sobre as guerras que travámos e travamos jamais seremos capazes de assegurar a paz. E o ciclo iniciado em 1999 com o bombardeamento da antiga Jugoslávia, a que se sucedeu o Afeganistão em 2001 e o Iraque em 2003 está encerrado.

Às invasões militares apresentadas como a concretização das teses do «Rebuilding nations» vão suceder-se as alianças temporárias e flexíveis com alguns ditadores imprescindíveis e ameaças de sanções. Não há soluções perfeitas. Mas sobre isso falaremos depois.

*PÚBLICO, 20 DE NOVEMBRO