6.5.04

"A Europa e a Constituição" II, ou a questão do "primado".

A excelente posta “a Europa e a Constituição”, do meu colega Blasfemo Rui A., mereceu um comentário (Heresia) muito pertinente do José.

Na realidade, como tal comentário deixa antever, no fundo, no fundo, em termos de discussão sobre a Europa (mais precisamente, sobre a posição de Portugal face à Integração Europeia), podemos quase dizer que “cada cabeça, sua sentença”!
Também não compreendo muito bem o alcance da afirmação do Professor Jorge Miranda, uma das referências incontornáveis do nosso constitucionalismo (porém, também reconheço que não acompanhei o contexto de tal afirmação e estou apenas a referenciar-me a partir do dito comentário).

Mas o que é que, sobre esta questão e para além daquilo que o Rui A. escreveu, importa, na minha perspectiva, salientar:

1- A velha discussão sobre o “primado” do Direito Comunitário – que ultimamente, entre nós, se tem levantado – é tão desnecessária, quanto inconsequente! De resto, ela já não se coloca em mais nenhum Estado-membro, desde há muitos anos. E porquê? Tão simplesmente porque, pelo menos desde 1964 (Ac. Costa vs. E.N.E.L. do T.J.C.E.), há uma corrente jurisprudencial que vem dilucidando a questão, clarificando-a e impondo as suas consequências. De um modo geral, em termos práticos, estas (as consequências da afirmação do “primado”) são aplicadas quotidianamente em todas as ordens jurídicas. Não há dúvidas (até em função da redacção do nosso antigo nº 3, do artigo 8º, da Constituição da República Portuguesa) que os actos das instituições (Directivas, Regulamentos e Decisões), não só primam sobre os actos de Direito Interno (legislação ordinária), como previamente têm aplicabilidade directa – ou seja, nem sequer necessitam de uma intervenção nacional legislativa, administrativa ou de outra natureza qualquer, para existirem, imediata e automaticamente, no direito interno (por exemplo, os Regulamentos comunitários “existem”, vigorando de imediato, sem necessidade de qualquer publicação do Diário da República), desde que adoptados (regularmente) na ordem comunitária e consequentemente, publicados no J.O.U.E..

2 – O que doutrinalmente se discutia era se, confrontando actos comunitários (quaisquer que sejam, de direito derivado, ou dos próprios Tratados), com as normas da Constituição, os efeitos da afirmação (e prática de muitos anos) do princípio do “primado” das normas comunitárias, continuariam a ter (ou não) o mesmo alcance. Dito de outro modo, a Constituição teria ou não que ceder? Claro está que esta discussão era e é (não coloco agora em equação o projecto de nova e famigerada “Constituição” para a Europa, saído da controversa Convenção) eminentemente académica, já que dificilmente existirá uma contradição de base entre as Constituições nacionais e os grandes princípios estruturantes da integração e da União Europeia (designadamente, ou talves, melhor dito, sobretudo, os Tratados comunitários). De resto, a estrutura jurídica comunitária assenta no lastro Constitucional Europeu e nas tradições jurídicas de todos os Estados–membros (no mínimo, em termos de cultura jurídica comum). Recentemente, com o Tratado de Amesterdão, houve mesmo o cuidado de introduzir expressamente no Direito Originário o conjunto de princípios de referência que permitem afirmar que a Comunidade é, desde logo, uma “comunidade jurídica” (Estado de Direito, princípio democrático, respeito pelos Direitos fundamentais, etc., etc.)....
No entanto, a importância sobretudo político-simbólica da questão – tem que reconhecer-se – existe. Claro está que as teses (sob o ponto de vista doutrinal) divergiam, sobretudo para todos aqueles que entendem ser difícil (até mesmo contraditório ou impossível) conciliar uma estrutura supra-nacional e de caracter integraccionista, com a existência de Estados nacionais (ou seja, em suma, o sentido “comunitário”, misto e híbrido, atribuído às Comunidades e à União). Repare-se, numa perspectiva comunitária, não fará sentido que, naturalmente, o Direito comunitário não “prime” sobre as Constituições – sobretudo (acrescentaria eu próprio e sob a minha responsabilidade) as “Constituições legisladas” como aquelas que existem na Europa continental , como a Portuguesa! Senão vejamos, por absurdo, seria possível que a dado passo, num Estado-membro qualquer da zona Euro, houvesse uma revisão constitucional que reafirmasse, por exemplo, a vontade nacional de integração e de pertença à UE, mas resolvesse adoptar uma moeda nacional própria, diferente do Euro! Note-se, até os Ingleses – e aqui remeto para a posta do Rui A. – aplicam (e aplicaram) rigorosamente este primado, por exemplo, entre outros, na sequência do Ac. FactorTame (cedeu um princípio constitucional britânico, face a um princípio – é certo que do Tratado! – comunitário, a saber, o direito de estabelecimento e a não discriminação em razão da nacionalidade). Mas isso, deverá ser, concerteza, uma questão de competência e de rigor dos Tribunais Ingleses....
Por outro lado, também tem que ser reconhecido que o pressuposto do "primado do Estado", suporte de toda a teoria do Estado e no qual se ancora eminentemente toda a lógica de Direito Público interno, está em contradição com esta afirmação "seca" do "primado" comunitário....

Só que, o que aqui sucedeu, com a nossa recente e “encapotada” revisão constitucional, foi o ultrapassar, por mera vontade do legislador, dessa mesma querela doutrinal. Foi o estabelecer uma solução (é certo que clara, porém...) unilateralmente que, ainda que corresponda inevitavelmente a um sentido previsível da evolução das coisas, será sempre menos rica e menos flexível (e mais rígida e “cristalizada”) do que as soluções resultantes da discussão doutrinal e do trabalho natural, evolutivo, dos juristas e dos tribunais. Além disso, como aqui já escrevemos (“Foi você que pediu uma revisão constitucional?” – posta de 23 de Abril), não poderia (ou deveria) ter existido uma revisão constitucional (neste contexto, e no sentido de Vital Moreira, de tamanha importância!) tão discreta, dissimulada, “encapotada” e fugidia!
Não houve sequer a mínima hipótese de discussão pública, pondo em causa a sua material legitimidade, e dando um mau exemplo da transparência da actividade legislativa interna! Comparando este processo, com a discussão (em vários fóruns) do famigerado projecto de “Constituição” Europeia, estamos conversados....