5.5.04

EUROPA E CONSTITUIÇÃO



Será certamente muito discutível o conteúdo de uma eventual Constituição da União Europeia. Não é, contudo, um instrumento de que se possa prescindir por muito mais tempo, se quisermos melhorar o funcionamento democrático e a transparência da União.
Desde logo, porque o processo comunitário foi sempre, desde os primórdios aos dias de hoje, político. Somente um reducionismo categórico poderá acreditar na separação estanque entre a economia e a política, como se o processo decisional de uma não envolvesse a outra, ou melhor, ambas.
As Comunidades Europeias e a sua resultante maastrichiana, a União Europeia, são entidades que, desde sempre, exercem poderes de soberania em exclusividade, em concorrência ou por mandato expresso, consoante os casos e as matérias em causa. Os titulares desses poderes, cuja legitimidade de origem é aristocrática e só indirectamente democrática, exercem-nos de facto e de direito, decidindo, por isso, da vida de todos nós. E fazem-no com base numa Constituição material, composta por regras jurídicas confusas, sobrepostas e de extraordinária dificuldade de acesso, articulação e compreensão: pelo menos, três Tratados originários (CECA, CEE e CEEA), três de revisão (TUE, Tratado de Nice e Tratado de Amesterdão), a jurisprudência do Tribunal de Justiça (que enunciou diversos acordãos com valor constitucional, onde, por exemplo, se afirmou o primado da ordem jurídica comunitária sobre o direito interno) e várias praxes e usos constitucionais não codificados ou, sequer, transcritos (por exemplo, a que distribuí o número de comissários pelos Estados-membros).
Ora, onde existe poder e uma máquina para o aplicar é bom, do ponto de vista liberal, que existam regras claras quanto à sua natureza, competência e exercício. Que essas regras possam ser de fácil consulta e entendimento mediano. E que se encontrem plasmadas num documento de valor metajurídico, conformador da ordem jurídica ordinária, em suma, de uma Constituição.
Aliás, na segunda metade do século XVIII e no século XIX, na eclosão do constitucionalismo, esses documentos eram vistos como uma garantia das liberdades e de salvaguarda dos direitos individuais, genuínas cartas de privilégio dos tempos modernos.
A União Europeia, entidade detentora de amplos poderes de soberania, continua a funcionar ao arrepio de tudo isto. Exerce um poder enorme sobre uma enorme quantidade de almas. De mais de 500 milhões, desde o princípio desta semana, distribuídas por 25 países. Brevemente, estender-se-á, pelo menos, à Roménia e à Bulgária, proximamente, à Turquia.

Por tudo isto, ao contrário do que afirmam aqueles que são avessos à integração comunitária, a aprovação de uma Constituição que clarifique as regras e os procedimentos, delimite os poderes próprios e delegados, e imponha limites a este imenso poder, só poderá ser benéfica. Sendo o poder constituinte necessariamente exercido sob a forma de tratado, tem a vantagem da necessária ratificação por cada um dos Estados-membros. Que, em abono da democraticidade do processo, deverão submetê-lo a referendo popular, fatalmente favorável na esmagadora maioria dos casos.

Deste ponto de vista, as recentes resistências do Reino Unido só na aparência beneficiam uma União Europeia mais democrática e com processos mais transparentes. De facto, ao contribuírem para que a confusão permaneça, alimentam um sistema opaco, cada vez mais governado em regime de directório dos cinco maiores países, onde a aparente intransigência inglesa ganha destaque e serve somente para obter força negocial e vantagens próprias. Não corresponde, desenganem-se os incautos, a qualquer posição liberal de princípio. Pode dizer-se, por isso, que as aparências iludem.