O Público diz-nos que "o PND decidiu promover um debate interno sobre a questão do aborto, o qual culminará na realização de um referendo que definirá a posição oficial do PND sobre esta matéria".
O que é que se entende por "questão do aborto"?!
Partindo do pressuposto de que ninguém quer defender "o aborto" em si mesmo, bem assim como não sendo, por absurdo, imaginável que se imponha, a uma mulher ou a um casal, "o aborto", a questão que se pode discutir (designadamente, face ao estado da regulamentação portuguesa) é tão somente a da sua criminalização ou não, para quem o pratique, ou se veja na contingência de o praticar!
Postas as coisas nestes termos, poderemos aceitar, ou não, o estado actual da ordem legal portuguesa que rege tais situações, poderemos propor e discutir novos enquadramentos legais, fundados em determinadas concepções éticas e axiológicas; poderemos tão simplesmente considerar a "questão do aborto" como uma questão sem relevo jurídico-criminal, ou mesmo sem relevo jurídico, de todo; poderemos, também, compreender e pronunciarmo-nos sobre posições morais, religiosas (designadamente, as nossas), ou mesmo de caracter meramente funcional, numa perspectiva médica e sociológica, ou noutra qualquer ...
Agora, o que não me parece adequado é que se possa, numa "questão" como esta, reconduzível sempre, necessariamente, à consciência individual de cada um, um partido político tomar uma "posição oficial"!
Mais, independentemente daquilo que se pense, para além da posição (pessoal!) que, quem quer que seja, possa ter relativamente à "questão do aborto" - na minha opinião (obviamente, também pessoal e independente de partidos, organizações, associações, empresas, etc., etc. de que faça, porventura, parte!), esta "questão" não deveria ser uma questão político-partidária!
E só o é por dois motivos:
1º Porque é historicamente uma "bandeira" tradicional da esquerda clássica e ortodoxa que teve a habilidade (como sempre foi tendo, de um modo geral) de nos impor um discurso político que domina os media, os cânones do "politicamente correcto"; porque teve (e ainda vai tendo) a habilidade de "dominar as palavras", tendo, em consequência, produzido uma retórica "cripto-marxista" que conseguiu "normalizar" o pensamento dominante, monopolizar o "politicamente aceitável" e, por essa via, acabando por dominar grande parte da agenda política!
O problema é que mesmo quem não se assume politicamente como sendo de esquerda, acaba, acabou sempre, de uma forma ou outra, mais intensa ou mais ligeiramente, por assimilar (mesmo inconscientemente) essa cultura dominada e reproduzida pela retórica de esquerda, essa espécie de "ditadura das palavras". E, assim sendo, é frequente vermos partidos, organizações, políticos, pessoas que não sendo de esquerda e abjurando mesmo tal cultura de base "cripto-marxista", caírem, porém, naquilo que Guy Sorman qualifica como a "armadilha" da cultura de esquerda! E, sem se aperceberem, dizendo-se de direita ou do centro, ou mesmo tentando ser liberais, acabam por seguir ufanamente a "agenda" da tal esquerda tradicional!
2º Porque os partidos ainda não se consciencializaram de que não detêm o monopólio da vida das pessoas, da sua posição filosófica, ética e moral (o que seria um contra-senso!), da sua intimidade!
A existência de "vida" para além da política, é uma coisa que os partidos tradicionais, os seus aparelhos e classe dirigente (nomeadamente em Portugal e mesmo aqueles que se pretendem diferentes!) ainda não conseguem imaginar!
Há, também, aqui, um "tique de Estado", um vício de se julgarem omnipresentes, de se verem como um "ente público" ( e com potestas de Estado à moda antiga) e não como uma associação privada (como são de matriz, se bem que com um estatuto especial), com um fim e um objecto determinado!
Como dizia o J. Miranda, há dias, "ninguém escapa à mentalidade socialista"!