4.2.07

A CANGA

Bem para além dos fait-divers, coisas que realmente importam: as novas formas de condicionamento da liberdade de expressão.
Texto no Público de Francisco Teixeira da Mota:###

(...) Depois da criação da ERC, que, com a ameaça legal de pesadas multas aos órgãos de comunicação social, tem revelado um zelo inexcedível na defesa dos pontos de vista dos poderes político-partidários quanto à liberdade de imprensa, temos agora um novo instrumento repressivo para "curvar" os jornalistas mais rebeldes, investigativos, incómodos, não-alinhados...

Pretende o Governo que os jornalistas passem a ter de responder pelo que escrevem, não só disciplinarmente perante a sua entidade patronal e civil e criminalmente perante os tribunais mas também perante um organismo que, fatalmente, será censório, designado por Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas. Este organismo passará a ter vastíssimos poderes disciplinares sobre os jornalistas, apurando das mais diversas violações de deveres éticos e deontológicos e aplicando-lhes diversificadas sanções que irão desde a repreensão escrita, até à suspensão do exercício da actividade profissional até 12 meses, passando por multas que irão desde os 100 euros até aos 10 mil euros. Não conheço nada semelhante na Europa que nos é vizinha mas é, com certeza, uma "festa" que se avizinha. Para gáudio de todos aqueles a quem "incomoda" a existência de certos jornalistas.

Nos termos da proposta de lei, o processo disciplinar pode ser desencadeado por iniciativa da própria Comissão da Carteira ou, ainda, mediante participação de qualquer pessoa que se considere afectada pela alegada infracção disciplinar e, até, pelo conselho de redacção do órgão de comunicação social em causa. E quais os deveres dos jornalistas que podem dar origem a estes processos disciplinares?

Na prática, todos eles são deveres que já originam responsabilidade civil e criminal pelo que vamos assistir a uma absurda e extremamente onerosa para os jornalistas (e para a qualidade da informação) duplicação de processos. Na verdade, o cumprimento do dever do jornalista, por exemplo, de "abster-se de formular acusações sem provas e respeitar a presunção de inocência" ou de "preservar, salvo razões de incontestável interesse público, a reserva de intimidade, bem como respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas" é, actualmente, avaliado pelos tribunais, cíveis ou criminais, quando alguém se queixa de difamação ou da violação da sua intimidade e privacidade. Mas embora isso seja suficiente na "Europa civilizada", parece não o ser no nosso país, que de mentalidade tacanha e receoso da liberdade de imprensa, quer colocar mais um "freio" nos jornalistas: no fundo, já chega de tanta libertinagem, é preciso ordem e disciplina, começar aí a multar alguns jornalistas mais desagradáveis, a ver se aprendem...

Ninguém tem dúvidas de que, no caso da aprovação da alteração em causa, os jornalistas incómodos para além das participações nos tribunais passarão a ser "bombardeados" com participações disciplinares na Comissão da Carteira, enquanto a ERC, na medida das suas possibilidades e com a maior boa vontade, irá ajudando à "festa".

Como já tem sido referido por diversas pessoas, as obrigações éticas e deontológicas em causa não deveriam ser sancionadas senão em termos éticos e morais, por um qualquer órgão credível criado pelos próprios jornalistas e meios de comunicação social, deixando-se para os tribunais a punição das violações da lei.

Estamos, assim, perante uma alteração do Estatuto do Jornalista que restringe, de forma indirecta, a liberdade de expressão e de informação e que é, infelizmente, patrocinada por personalidades insuspeitas de simpatias com "ditaduras". Em vez de se alterar a liberdade de imprensa restringindo-a directamente, o que seria impossível, decidiu-se atacar a mesma liberdade "pelo lado", pondo em causa os jornalistas e o seu trabalho, o que irá, inevitavelmente perturbar o funcionamento das redacções e a qualidade da informação produzida. Com a "conivência" dos seus próprios representantes, os jornalistas correm, assim, o risco de ter de "dobrar um pouco mais a espinha" para mal de todos nós, consumidores de informação que queremos, naturalmente, jornalistas "sem medo".

A vingar a proposta governamental, assim não sucederá e o ministro dos Assuntos Parlamentares ficará, seguramente, conhecido não por ter criado uma qualquer "lei da rolha", como no final da monarquia sucedia, mas sim por ter descoberto esta nova forma de refrear os jornalistas: a "canga".»