9.2.07

Não é?


Num artigo publicado hoje no Público, sob o título O Não e os católicos, o Vasco Pulido Valente apresenta duas teses. Primeiro, que o catolicismo dos portugueses se está a transformar, no sentido em que eles passaram a encarar a Igreja como encaram um supermercado: vão lá buscar aquilo que lhes interessa ou lhes convém, e deixam lá ficar aquilo de que não precisam ou de que não gostam. Segundo, que o sentimento católico continua vigoroso em Portugal: "A campanha do Não - escreve ele - no seu entusiasmo, no seu zelo, e mesmo no seu excesso, mostrou, de facto, a força do sentimento católico em Portugal".###

O meu propósito não é comentar estas teses, que subscrevo. Mas, antes, comentar a seguinte afirmação que está contida no artigo: "(...) verdade também que a Igreja não é uma organização liberal ou democrática e que não existe sem obediência."

Não é?

O primeiro princípio do liberalismo é o respeito pela pessoa humana, como procurei chamar a atenção num post anterior resumindo as teses de Lord Acton. Uma sociedade em que as pessoas não se respeitam uma às outras é uma sociedade pronta a que, na primeira oportunidade, algum dos seus membros tome o poder e acorrente todos os outros. Em nenhum momento durante a campanha do referendo algum padre da Igreja, no meu conhecimento, tratou mal algum dos seus oponentes.

Segundo princípio mais importante do liberalismo: o respeito pela consciência de cada pessoa (a antiga liberdade de consciência religiosa). Num país em que 97% da população se afirma católica e em que a posição oficial da Igreja é Não é provavelmente sintomático do respeito por este princípio que as sondagens indiquem que a maioria dos participantes no referendo vai votar Sim. Mais sintomático ainda da tolerância da Igreja é o facto de vários dos seus membros terem declarado em público que vão votar Sim, em clara oposição à postura oficial da sua Instituição.

O VPV afirma também que a Igreja não é uma instituição democrática. Nada de mais errado. Muitos séculos antes de a democracia chegar à sociedade civil já a Igreja Católica se governava internamente por princípios colegiais e democráticos. E quanto à descentralização do poder - outra característica do liberalismo - quem quiser saber como se faz, o melhor que tem a fazer é aprender com a Igreja Católica.

Finalmente, a questão da autoridade e da obediência. O VPV parece associar (mas eu não estou certo) autoridade a falha de liberalismo. Nada de mais errado. Na realidade, eu estou convencido que um dos maiores erros de alguns liberais é o de considerarem que pode haver liberdade sem autoridade. Não pode. A liberdade sem autoridade descamba inevitavelmente na anarquia e na capacidade dos mais fortes para submeterem os mais fracos. A Igreja possui uma autoridade (eleita democraticamente) e por isso representa, talvez, como poucas outras instituições, aquela forma de liberdade ordenada (ordered liberty) de que falava Lord Acton e que é um traço marcante de uma instituição liberal.