13.5.04
FEDERALISMO
Tenho seguido com redobrado entusiasmo a polémica em torno da Constituição Europeia e do modelo para a Europa comunitária que, em boa hora, o Diga-ao-Manel lançou. Digo isto sem ironia ou acrimónia, no que julgo ser uma autoridade insuspeita, sobretudo porque a pouco mais de um mês de eleições para o Parlamento Europeu, nenhum dos grandes partidos do sistema se deu a trabalhos semelhantes. Os meus parabéns, portanto, ao Partido do Manel.
Já não concordarei inteiramente com o que por lá tenho lido, ou seja, com o que tem sido dito sobre a temática em questão. Num comentário próprio (ao que indicava a mensagem) do Dr. Manuel Monteiro feito sobre um texto do CAA, li que o PND seria (cito de cor) contra esta Europa federalista e directorial que nos querem impor, posicionando-se, por consequência, em favor de outra Europa comunitária que, até agora, não me conseguiram explicar ou eu não consegui entender.
Desde logo, chamo a atenção para uma possível contradição nos termos em que o problema nos é colocado: federalismo é o inverso de directorialismo e de governo centralizado. Seja na Europa comunitária, seja noutro sítio qualquer. Se lermos o que Hayek escreveu no «Caminho para a Servidão», veremos que ele defendeu o «princípio federativo» como forma política mais próxima do liberalismo, porque a sua materialização permitiria precisamente esvaziar o poder central burocrático e estatista de funções e competências que seriam atribuídas a entidades locais e regionais, mais próximas, participadas e controladas pelos cidadãos. Mais disse, e disse-o antes ainda do fim da 2ª Guerra Mundial, que antevia como possível que esse princípio viesse a ser aplicado nos países da Europa Ocidental. Como, na realidade, tem vindo a ser, embora com muitas indefinições e contradições.
Bem sei que o federalismo europeu não foi nunca uma ideia unívoca no processo comunitário, mesmo nos seus primórdios, no pós-1945, quando eram ainda românticas as visões sobre o futuro da Europa. Nos Congressos de Montreux (1947) e de Haia (1948), confrontaram-se, pelo menos, duas teses federalistas opostas: a de Altiero Spinelli, defensor de um federalismo centralista, e a de Denis de Rougemont, que propunha um federalismo assente no regionalismo político. O federalismo de Spinelli era construtivista e socialista, queria reforçar os poderes públicos por via da construção de um mega-Estado central, com exército próprio e outras atribuições de soberania, contribuindo, deste modo, para o fortalecimento das suas unidades estaduais parcelares. É uma construção pública estatizante, baseada nos poderes dos Estados, avessa à soberania individual. O modelo de Rougemont visava o oposto: esvaziamento dos poderes dos Estados-Nação europeus, por via da descentralização das suas competências para unidades regionais, sobre as quais se estabeleceria um federalismo ordenador, não centralizador (é o tal «princípio federativo» em que Hayek falava).
O problema actual da Europa comunitária já não é o do federalismo conducente a um mega-Estado central. Aliás, dada a enorme quantidade de Estados-membros (25) e os que brevemente se lhes juntarão (Roménia, Bulgária e Turquia), é impossível avançar para o modelo de Spinelli. As opções que estão em cima da mesa são só duas: a de um sistema directorial, no qual temos, de facto, vivido desde Maastricht, ou de um federalismo regionalista como propunha Rougemont, que é ainda possível alcançar e que a própria UE não excluí. Veja-se, nomeadamente, a ênfase dada ao Comité das Regiões e os apoios concedidos aos processos de regionalização, dos quais, de resto, Portugal e o Dr. Manuel Monteiro sempre se quiseram afastar. Para este fim, a declaração de um texto constitucional que ponha fim à balbúrdia normativa em que a União tem vivido e à sombra da qual se tem afirmado o poder dos grandes Estados, é vital para afirmar uma Europa liberal, em oposição a uma Europa socialista. Pela última vez, há que dizê-lo claramente, a Constituição Europeia (não necessariamente a Constituição de Giscard) é nossa amiga!
O que não é possível sustentar em conjunto, como parece ser o pretendido pelo Dr. Manuel Monteiro e pelo PND, é, por um lado, um modelo de liberdade da Europa comunitária e, por outro, a exaltação do intergovernamentalismo que, por definição, é o mais centralizador dos sistemas de cooperação internacional, já que confia todo o processo decisional aos governos dos Estados. Ou seja, De Gaulle e o liberalismo nunca jogaram o mesmo jogo, assim como nunca foram coincidentes os interesses do Reino Unido e da Europa continental.
A direita que ama a liberdade deveria, de uma vez por todas, deixar-se de fantasmas e de ilusões e propugnar por um federalismo liberal claro, assente em valores regionalistas, que levassem a uma perda efectiva de poder por parte dos Estados, sejam eles nacionais ou putativamente supranacionais, via de sentido único para a recuperação da soberania do indivíduo, há muito tão arredada das nossas sociedades.