Nota prévia: O texto que se segue é um mero exercício de especulação teórica. Não se baseia em qualquer informação privilegiada, pelo que a interpretação que é sugerida poderá não ter qualquer relação com a realidade.
"O general sábio faz que as suas tropas vivam à custa do inimigo"
Sun Tzu
O referendo ao aborto (ou I.V.G., se preferirem) de Fevereiro de 2007 foi uma iniciativa do Partido Socialista e do Governo apoiado pelo mesmo partido. Qualquer que seja o seu desfecho, o vencedor é já conhecido - é o próprio Governo.
Depois de vencer folgadamente as eleições gerais de 2005, o Governo encontrou-se confrontado com dois objectivos estratégicos principais:
A) Vencer as eleições gerais seguintes.
B) Governar de forma a que os resultados da governação permitam essa vitória.
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O Objectivo B obriga a que o Governo se liberte de alguns traços políticos "de esquerda" e opte por políticas centradas na eficiência, por vezes com traços liberais. Contudo, a governação "realista" pode apresentar uma pesada factura nas próximas eleições, comprometendo o objectivo A - um objectivo fundamental.
Na campanha eleitoral de 2005, o Aborto foi um tema central na campanha das forças políticas à esquerda do Governo, pelo que este decidiu retirar esta bandeira a essas forças, promovendo um novo referendo.
O referendo providencia dois objectivos tácticos:
C) Deteriorar o desempenho das restantes forças de esquerda nas próximas eleições gerais, reduzindo perdas de votos.
D) Ocupar a opinião pública com um tema que nada tem a ver com a governação, provocando um "efeito de cortina". Enquanto as pessoas andam entretidas com o Aborto, reparam menos na governação.
Pode haver pessoas do Governo muito empenhadas no tema do Aborto, que sentirão o resultado da votação como vitória ou derrota. O Governo no seu conjunto, e enquanto tal, já ganhou o referendo, sendo irrelevante, nesse aspecto, o resultado da votação, uma vez que ganhar o referendo não é nem um objectivo estratégico nem táctico - o objectivo é promover o referendo, não necessariamente ganhá-lo.
Já em 1998 quem "ganhou" os dois referendos perdeu as eleições gerais seguintes, mostrando a irrelevância política/partidária do resultado eleitoral (na ocasião poderá ter havido quem não compreendesse este facto).
Já no que respeita à Oposição, o referendo coloca desafios consideráveis. É que caso não exista uma acção clara contra a posição do Governo, a Oposição arrisca-se a perder votos para formações políticas conservadoras. Compreende-se a posição firme, contrária à posição do Governo, da chefia da Oposição. É que neste caso existe um objectivo táctico semelhante ao objectivo C) do Governo (trocando "esquerda" por "direita").
Falta mencionar a falta de oposição da Presidência da República à iniciativa do referendo. Neste caso, os objectivos estratégicos são semelhantes aos A) e B) do Governo, mutatis mutandis, mas acrescenta-se um objectivo estratégico E), manter a governabilidade do país, o que não se garante se as forças à esquerda do Governo crescerem desmesuradamente. É que o Alto Magistrado poderá reconhecer que o adversário do Governo no referendo não é a Oposição nem qualquer estrutura religiosa, mas antes são os seus aparentes aliados - as forças à sua esquerda.
José Pedro Lopes Nunes