Basta acompanhar a recente polémica sobre o serviço cívico que tem atravessado as páginas do “PÚBLICO” para perceber como o tempo não lectivo dos estudantes sempre foi terreno fértil para os proselitismos vários. Contudo, a par dessa discussão sobre «quem mandou quem fazer o quê«, é importante que demos mais alguma atenção ao que foram e como funcionaram essas mobilizações do chamado sector intelectual e estudantil após o 25 de Abril.
Os processos revolucionários detestam o ócio, os tempos livres e temem as actividades cuja organização do tempo e das hierarquias lhes surge como desregulada. Os serviços cívicos e as campanhas de alfabetização funcionam como meio de ocupação e controlo daqueles que, pelo seu estilo de vida, são dificilmente controláveis. (Assim se entende que durante o congresso dos escritores, em 1975, uma das propostas aí apresentadas até colocasse a hipótese de se alargar o serviço cívico aos escritores.) ###
O PREC não dividiu os portugueses apenas em revolucionários e contra-revolucionários. O povo que supostamente seria libertado pela revolução também foi dividido em consciente e alienado. Às vezes o retrato dos «alienados do Norte» era quase grotesco. Não afiançou, em Cuba, Otelo Saraiva de Carvalho, que as Forças Armadas Portuguesas iriam participar no desenvolvimento do Norte do país onde, segundo ele, existiriam localidades cujos «habitantes têm um vocabulário inferior a 500 palavras»?
Foi nesse país dos ignorantes e alienados que as campanhas sanitárias e de alfabetização, que arrancaram ainda no Verão de 1974 e que anteciparam o serviço cívico, tal como as sessões de dinamização levadas a cabo pelo MFA, como a «Nortada», e a «Verdade», tiveram quase exclusivamente lugar.
O serviço cívico e as campanhas de alfabetização não dizem apenas respeito aos estudantes e a quem os dirigia. Eles inserem-se numa visão revolucionária da sociedade em que, como afirmou Sartre, em Lisboa, em 1975, «As eleições são uma ratoeira para idiotas.» Mas não só. É também uma sociedade em que, em nome da igualdade material entre os homens, se estabelece entre eles a maior das desigualdades: a intelectual. Por isso, em Lisboa, há 32 anos, ninguém se indignou quando, após invectivar os estudantes para que fossem para os campos fazer a revolução cultural, Sartre perguntou : «O Povo Português no seu conjunto, os camponeses do Norte, por exemplo, são cidadãos livres e capazes de votar com todo o senso que esse voto implica ou ainda não são capazes?»
*PÚBLICO, 19 de Julho