A espantosa arrecadação de receita conseguida graças à instalação de novos radares em Lisboa proporcionou várias reportagens televisivas de verão. Invariavelmente um elemento das forças policiais dava conta dos excepcionais resultados conseguidos com os ditos radares. À volta deste agente, vários polícias, devidamente fardados, permaneciam sentados diante duns computadores que registavam os milhares de multas que ali caíam diariamente. Ao primeiro olhar é óbvio que muito daquele serviço podia ser feito pelos inúmeros funcionários da autarquia. Mas muito mais importante que esse desperdício de recursos é a concepção de segurança que está patente naquela sala cheia de agentes a contar multas. O que ali sobressai é um estado que a si mesmo se entende como um arrecadador de receita e que nessa função se empenha com extraodinário zelo, actuando de forma autoritaríssima nessa matéria: por exemplo, alguma polícia pode hoje entrar, de noite ou de dia, num local ou deteminar o seu encerramente como faz a ASAE? ###
O princípio da cobrança devidamente corroborado pelo poder da inspecção não só se sobrepõe a vários outros direitos como até ao mais elementar bom senso: pense-se no caso da ambulância que transportava um homem com um princípio de enfarte e que esteve parada meia hora por ordem dos agentes de trânsito. Segundo sabemos agora a ambulância esteve parada por uma boa razão: afinal “uma ambulância do tipo A-1” como a que estava ser usada naquele transporte não pode fazer urgências!
Regulamentos, normas, licenças, directivas... determinam todos os momentos e circunstâncias da nossa vida. A nossa própria existência tornou-se uma sucessão de actos legais. É enorme a pressão do Estado enquanto grande inspector-arrecadador sobre os cidadãos. Mais eficaz e discreto do que dar “uns abanões a tempo” a alguém é negar-lhe o direito a abrir uma loja ou não lhe autorizar alterações nos contratos de arrendamento.
O Estado português continua autoritário naquilo que lhe convém. No passado convinha-lhe controlar as mentes. Agora pretende controlar sobretudo as nossas carteiras. Sobre as suas outras competências, como a Justiça, faz um uso suficiente e suficientemente selectivo para manter o respeitinho. E o respeitinho mantém-se facilmente. Por exemplo, basta chamar populista a quem questiona determinadas matérias como o novo Código Penal.
Considerar esta discussão um assunto populista faz tanto sentido quanto chamar anorécticas às populações esfomeadas. Os portugueses não confiam na sua justiça e têm o direito de dizê-lo.
Por exemplo, o que pretende o novo Código Penal ao desvalorizar o que se entende como pequena criminalidade? Livrar polícias e tribunais de trabalhos e despesas. Mas será razoável passar aos cidadãos a ideia de que não vale a pena queixarem-se? A isto acresce que existem crimes que só são denunciados caso se garanta às vítimas o afastamento do agressor. Ora se a prisão preventiva ia em Portugal muito para lá do razoável – e ia, de facto – tal acontecia não porque os portugueses sejam particularmente dados a inventar acusações mas sim e sobretudo porque a justiça funciona mal. Coisa que nem divergiria do país no seu todo caso pudéssemos viver sem ela. Mas ao contrário do que acontece com os outros poderes, da justiça não podemos fazer de conta que não existe. Mais, temos de dizer que confiamos nela. Até quando?
*PÚBLICO, 19 DE Setembro