16.8.04

"DÊEM-ME OS JUÍZES INGLESES!"

"Este postal de Carlos Abreu Amorim no Blasfémias é uma ignomínia e um insulto aos magistrados do MP", afirma o José do blogue dos meandros da Justiça portuguesa denominado Grande Loja...

Quanto à primeira qualificação, se considerarmos o ponto de vista territorial e corporativo do José, julgo ser meu dever encará-la com algum enternecimento e comiseração.

Em relação ao putativo "insulto aos magistrados" está o José equivocado: não dirigi a minha posta aos magistrados mas sim à corporação do Ministério Público e às demais que controlam o sistema judicial português. A única personagem que se pode considerar atingida pelas minhas palavras é aquela figura trágico-cómica que, indecorosamente, ainda ocupa o cargo de Procurador-Geral desta república.

De passagem, sempre informarei o José e os membros da sua agremiação de que nenhuma das razões que aponto são "pífias" ou "gratuitas". Pelo contrário, a lógica factual que o José invoca é que parece ser de molde a causar receios a qualquer observador mais ou menos atento. Senão vejamos:

1. De acordo com o grupo que o José representa no mercado blogosférico a actual situação das K7's é um caso mais ou menos isolado e razoavelmente circunscrito na Justiça portuguesa - nada mais falso!
As fugas cirúrgicas de informação, o aviltamento público de arguidos ou de testemunhas (ou mesmo de quem acaba por não ser uma coisa ou outra) que nada sabem do que lhes está a suceder, infelizmente, é um procedimento já antigo, quase usual, nos meios judiciais portugueses. Dados processuais de toda a espécie enchem as páginas dos jornais quer neste caso, quer em muitos outros processos anteriores, com diversas personalidades a apontarem o dedo ao MP - por exemplo, e por todos, Diogo Freitas do Amaral no tempo de Cunha Rodrigues.

2. O outro ponto em que assenta a indignação da instituição cujo lavar de honra o José tomou em ombros reside na convicção de que o "palrador Salvado" é o grande - quase único - responsável pelas permanentes fugas ao segredo de Justiça neste caso. Totalmente falso, sem querer desculpar o comportamento injustificável de Adelino Salvado - mas este fez aquilo que todos os outros fazem há muito, só que foi apanhado com a boca na k7. Uma vez mais é aqui patente a preocupação da Companhia do José em libertar-se das culpas próprias alijando-as para as costas da Polícia Judiciária: não fomos "nós", foram "eles" os "palradores" - é este o lamentável timbre de todas as defesas exclusivamente corporativas.

3. A linda história que os paladinos blogosféricos da Procuradoria nos querem fazer acreditar prende-se com a ideia peregrina de que as informações sigilosas veiculadas pela porta-voz do Procurador-Geral eram da sua responsabilidade pessoal. No fundo, seria uma senhora que, por sua conta e risco, telefonava aos jornalistas e os informava das vicissitudes dos processos em fase de segredo de justiça. Apenas por mero acaso, envolvendo intencionalmente o líder do maior partido da oposição. Actuação isolada, avulsa e meramente individual, acerca da qual ninguém mais daquela honradíssima instituição teria o mínimo conhecimento.
Considero esta historieta uma ofensa à inteligência de qualquer cidadão comum. Considero, ainda, que a tentativa de a tornar credível constitui um esforço patético e desesperado de quem já perdeu a noção mais básica do respeito pela realidade.
Mas - atente-se - que se resolvermos, por conveniência politicamente correcta, ficar em estado de crença perante essa fábula (digna de uma narração inicial do tipo "No tempo em que os animais falavam...") existe uma conclusão inafastável: um Procurador-Geral em cujos serviços existem estes exemplos de utilização de informação privilegiada e sigilosa visando a obtenção de fins puramente políticos não pode continuar a exercer essas altas funções. Ou seja, a alucinante defesa de bairro em que a Procuradoria insiste só poderá ter um de dois desfechos - ou não se acredita de todo (é a que prefiro) ou, então, acredita-se e conclui-se que aquele homem não controla minimamente a instituição que dirige e tem de se ir embora.

4. Outra ideia muito cara ao grémio de que o José se arvora em campeão é a de que os males da Justiça portuguesa se devem maioritariamente aos políticos, i.e. aos fazedores de leis. Também aqui discordo. As nossas leis (quer as do âmbito penal, quer as outras) têm insuficiências e lacunas mas não é aí que está o problema.
Já uma vez, ainda no Mata-Mouros, citei o conhecido adágio "Não me importam as leis - dêem-me os juízes ingleses". A verdadeira questão está na interpretação desrazoável e preguiçosa que grande parte dos agentes da Justiça faz de qualquer lei, quer as boas, quer as más.
Os nossos tribunais estão pejados de profissionais habituados a lerem as normas jurídicas com a aptidão de um "polícia da Régua" e o sentido de Justiça de uma máquina a vapor.
Além disso, como o José sabe muito bem, grande parte das leis que estão em discussão apenas são feitas por políticos no plano estritamente formal - já que, na verdade, são produto de comissões legislativas integradas por juristas de grande gabarito e a intervenção política, na maioria dos casos, resume-se à sua aprovação formal.

5. Há mais de um ano escrevi que no fim do processo Casa Pia o Código de Processo Penal iria ser profundamente revisto e que vacas sagradas como o "segredo de justiça", bem como a afrontosamente lata da aplicação da "prisão preventiva" pelos Tribunais portugueses teriam o seu termo. Tive razão antes do tempo, mas hoje entendo que é preciso ir mais longe.
A gravidade do que se está a passar e, sobretudo, a manifesta falta de inteligência com que as corporações estão a defender as suas coutadas levam-me a perceber o seguinte:
5.1 O cancro é muito maior do que pensávamos;
5.2 A formação dos magistrados tem de ser uma questão prioritária a bem do Estado de Direito, nomeadamente nas áreas que tangem o sentido ético do exercício do poder;
5.3 Urge fazer uma mudança bastante mais significativa na lógica da investigação e da acusação criminal;
5.4 A separação higiénica entre a magistratura e a polícia judiciária terá de se ponderada;
5.5 O Ministério Público, manifestamente, não conseguiu ultrapassar o seu pecado original de ser um projecto pessoal do seu pai-criador, o Dr. Cunha Rodrigues. Sem este, manteve os seus defeitos agora sem rumo e sem controlo e com efeitos potencialmente perversos;
5.6 É preciso discutir seriamente a viabilidade do Ministério Público em Portugal e estudar modelos alternativos no processo penal.


6. Seria bom não se perder o sentido daquilo que antes escrevi: "Que ninguém se engane e julgue que o que estamos a assistir é um caso isolado. Que ninguém se equivoque e pense que isto é uma questão de política e de partidos.Este é o momento supremo de reflexão que deve unir todos os que ainda acreditam no Estado de Direito. Porque - nunca se esqueçam - agora foi com "eles"; amanhã, se nada de importante mudar, poderá ser connosco".

Agradeço efusivamente ao José e aos membros da sua Comunidade de interesses que com a exposição pública das suas razões obcecadamente territoriais me continuam a ajudar neste esforço de tentar desvendar o véu que oculta os muitos podres da justiça portuguesa. Juntos venceremos...