2.8.04

(à guisa de) CARTA ABERTA AO DR. MÁRIO PINTO

Confesso não ser grande apreciador dos seus textos. Julgo que padecem do defeito fariseu de não serem aptos a conseguirem a higiénica separação entre "o que é de Deus e o que é de César".

Quando fala de economia, escorrega para a religião; quando reflecte sobre a política, conclui com citações do Evangelho. Por outro lado, os seus artigos denotam, vezes demais, um instinto de defesa grupal - talvez seja uma desconfiança mal alicerçada, mas sempre que o leio surge-me a suspeita de que aquilo que escreve é dirigido não pela mão divina mas por interesses de organizações demasiado terrenas. Foi o que senti quando li as suas insistentes defesas da "liberdade de ensinar", privada, é certo, mas pia, seguramente...

Hoje, o Dr. Mário Pinto atacou a esquerda "radical". Pelo caminho, dardejou aquilo a que chamou "neoliberalismo". Tudo estaria bem, não fora o extravagante facto do Dr. Mário Pinto se auto-situar próximo do pensamento "liberal". Percebe-se hoje que acompanhado de doses mastodônticas de redentoras ideias ditas "sociais".

O excerto de texto que aqui trancrevo é uma pequena amostra daquilo que a direita portuguesa beata, caturramente conservadora e irremediavelmente amarrada à ideia de que a defesa da sua organização é o princípio e o fim plenamente justificativo de todas as coisas, pensa acerca do liberalismo:

"Entretanto, e dada a evolução do liberalismo individualista para o liberalismo social (o neoliberalismo é apenas uma corrente teórica sem partidos e uma tendência prática inevitável dentro de qualquer economia de mercado contra a regulação social), o centro político, desde o centro direita ao centro esquerda, é cada vez mais consensual na sua normal pendularidade. Só há seriamente um risco: o da burocratização e falência do Estado social".

Sério risco, perigo imenso: a falência do Estado Social! Aliás, o único juntamente com a burocratização! Imagine-se...

Mais do que qualquer radical de esquerda, o que mais me faz espécie é esta "direita" entorpecida pelo ar bafiento de sacristia que se afirma "liberal" quando isso é benéfico para os interesses da sua devoção e, sobretudo, para se situar em posição privilegiada de poder negar tudo aquilo que o liberalismo significa.

O Dr. Mário Pinto e os vários lobbys que acompanham o seu pensamento, ao promoverem o chamado "liberalismo social", vão ainda mais longe no absurdo do que aqueles vetustos esquerdistas que perto do canto do cisne do marxismo tentavam fazer a pintassilguista "síntese dos contrários" entre o catolicismo e o marxismo, já que o fulcro dessa falida tese residia na crença de que as contradições, a final, não existiam - estes acólitos, agora, afirmam-se liberais para exaltar a liberdade do mercado nomeadamente quando isso convém à organização a que servem, mas fazem o elogio da "regulação social" e a censura do "individualismo" refutando de uma assentada a base de todos os pensamentos liberais.

Ninguém se pode afirmar liberal e fazer o louvor do Estado Social; nenhum liberal pode defender a regulação estatal como a regra e parâmetro da normalidade; não há liberalismo sem individualismo.

A inalienabilidade dos direitos do indivíduo, a sua natural imposição em relação aos interesses dos demais, principalmente face aos poderes públicos, são a essência da visão liberal do mundo e o embrião do conceito ocidental de Liberdade.

Não perceber isto não é pecado, Dr. Mário Pinto! Pura e simplesmente não é liberal. É outra coisa qualquer, uma ideia híbrida, nem sólida, nem líquida, nem gasosa, antes pelo contrário, uma espécie de alforreca do pensamento político a que alguém, por ironia, resolveu denominar de "liberalismo social". Mas que na sua tentativa impossível de fundir os opostos, inegavelmente, deslizou bastante mais para o segundo elemento do que para o primeiro.