A minha provocação ao Valete atingiu plenamente os objectivos: o João Noronha, "picado", respondeu-me com aquele seu inigualável brilho dos tempos antigos em que conhecia a separação entre o que é de César e o que lhe nunca deveria pertencer.
O João começa por me castigar na minha fraqueza bloguística. Na verdade, tem-me sido demasiado difícil parar de blogar, permanecer fiel às juras de abstinência de internet, cumprir os meus resolutos votos de castidade blogosférica. De facto, tenho pecado. Em pleno Agosto, num Porto semi-deserto, a tentar trabalhar no próprio instrumento da tentação - em que um pequeno clique nos faz mordiscar a suculenta maçã do blogspot -, não tenho resistido nessa luta desigual.
Mas, também aí, as minhas leituras do Novo Valete e de algumas das suas devotas inspirações me têm ajudado. Especialmente aquela singular proposição que resume em si o melhor da ética católica e reflecte o modo notável como os membros da igreja - i. e., a estrutura administrativa da organização ligada ao mercado das crenças sobrenaturais com posição dominante em Portugal - gostam de lidar com as questões do pecado:
"Um Santo peca sete vezes ao dia - o que é preciso é que se arrependa"
Eu, que não aspiro à santidade, tento blogar menos de sete vezes ao dia - mas, ainda assim, acredite o João, arrependo-me muito. Penitencio-me, bato no peito, mortifico-me intensamente. Não chego ao ponto de me auto-flagelar ou de fustigar os dedos (enquanto agentes materiais da acção pecaminosa), mas - lá está! - não tenho a graça de estar em estado de crença nem integro os quadros principais ou acessórios da organização quase-monopolista acima referida. Mas, humildemente, peço que aqueles que se encontram nessas condições o façam por mim.
A quase-Summa que o João elaborou como resposta é enorme. Tenta demonstrar que a lógica da sua organização não é incompatível com os ideais liberais - vexata quaestio já enfrentada por muitos. Quase todos deslizaram para o mesmo erro argumentativo: vêem a organização a partir dos dizeres dos seus dirigentes esquecendo a sua história, negligenciando a lógica dos seus comportamentos.
Aquilo que a igreja é não está patente naquilo que ela diz que é. A igreja católica é aquilo que fez e faz, o que defendeu, o que atacou, condensa-se nos actos concretos que cometeu. Para conhecer essa organização não nos podemos cingir a Encíclicas ou a textos canónicos redigidos em fraseologia imprecisa e que comportam as interpretações mais convenientes no momento.
Com essa organização, devemos, novamente, estabelecer uma analogia com outro adágio, desta vez a contrario: "Para conhecer o Frei Tomás não olhes para o que ele diz, olha para o que ele faz".
A organização do João não é nada daquilo que eu referi (e muito mais!)?
O João diz que não e arremessa-me textos e citações. Poderia encetar uma discussão baseada no mesmo tom, igualmente autorizado. Seria fácil, mas não é o meu estilo. Mas o sentido que o João tenta provar - e que é compartilhada por muitos, quase todos os que se dizem liberais em Portugal - parece-me tão distante da realidade que a sua afirmação de fé dualista talvez mereça uma reflexão mais profunda da minha parte. Mais tarde, mais devagar, talvez quando a obra de Weber fizer 100 anos.
Para terminar:
- Nunca quis contestar a liberdade de alguém assumir o que pensa ou impor o meu entendimento aos demais - essa atitude não é liberal (é claramente católica) e nunca o faria;
- Apenas estranhei esta síntese dos contrários (que é custosa e se aproxima perigosamente da tentativa impossível) que o Valete tomou como obra sua;
- Se Manuel Monteiro não é liberal, também nenhum outro dirigente político português o será. A direita portuguesa é visceralmente conservadora - no sentido granítico do termo - obscenamente beata e intrinsecamente receosa de qualquer hipótese de mudança. Aliás, Manuel Monteiro talvez seja o menos "iliberal" de todos eles;
- Não tenho qualquer "desconforto com a religião" - apenas com os fundamentalismos que dela resultam. Desprezo o fanatismo. Todos;
- Infelizmente já vi muitas almas nobres e racionalmente estruturadas descambarem na cegueira do fundamentalismo que rejeita o outro se este não presta o culto da sua devoção;
- Logo, eu "Sarlos", não te persigo, mas tudo farei para que não me possas cegar.