No dia 8 de Agosto de 1901, pela mão de Hintze Ribeiro, então chefe do Partido Regenerador e do ministério de Sª Magestade, foi publicada a última lei eleitoral da Monarquia. O texto que, no essencial, mantinha o sistema anterior, dividiu cada um dos círculos eleitorais de Lisboa e Porto em dois. Aparentemente, nada de grave, a não ser o facto de anexar a cada um dessesquatro círculos amplas zonas rurais adjacentes, onde o voto monárquico era bastante mais forte que o republicano, de modo a atenuar a preponderância deste último naqueles centros urbanos. Furibundos, percebendo as inevitáveis perdas eleitorais que a reforma lhes acarretaria, os republicanos baptizaram a «reforma» de «ignóbil porcaria».
Anos mais tarde e já no poder, mais precisamente por decreto de 14 de Março de 1911, os republicanos revogaram a «ignóbil porcaria» e fizeram-na substituir por uma lei que concedia o direito de voto a todos os cidadãos portugueses maiores de 21 anos. Assim se generalizou a convicção, que ainda hoje prevalece, de que a I República instituiu o sufrágio universal. Não fora o facto de a esse requisito se acrescentar a necessidade de «saber ler e escrever» para poder votar, isso teria sido verdade. Com essa limitação, valorizou-se o voto urbano em detrimento do rural, o mesmo é dizer, o voto republicano sobre o monárquico, o «progressista», sobre o «conservador». Em consequência do que, nas eleições de 28 de Maio do mesmo ano, dos quase 9 milhões de portugueses apenas 850 000 se encontravam recenseados como eleitores e, destes, apenas votaram 60%. Ou seja, à «ignóbil porcaria» sucedeu-se uma «porcaria ignóbil».
A legislação eleitoral portuguesa teve verdadeiro início no seguimento da Revolução dita «Liberal» de 1820. Foi sempre restritiva e manipuladora do direito de voto. Nas «Instruções eleitorais» de 10 de Novembro de 1820, por exemplo, o direito de voto era reconhecido somente aos chefes de família. Na lei eleitoral de 3 de Junho de 1834, já depois da guerra civil donde saíram triunfantes as forças «liberais», esse direito era conferido aos maiores de 25 anos com rendimento líquido anual superior a 100.000 réis, ao passo que para os membros do colégio eleitoral (a eleição dos deputados era indirecta) se exigiam 200.000 réis e aos deputados 400.000. O sufrágio permaneceu censitário e sexista até à República e, depois disso, foi o que se viu. Com o salazarismo, a União Nacional obteve sempre a unanimidade dos mandatos da Assembleia Nacional e, já na «primavera marcellista», as eleições de 1969 voltaram a dar os mesmos resultados, ainda que se sentassem nas bancadas da «União» alguns membros da «ala liberal».
Com o 25 de Abril e a instauração da III República, universalizou-se o sufrágio. Contudo, o sistema eleitoral criado serviu objectivamente para cristalizar no poder quatro grandes partidos, sendo que, verdadeiramente, apenas dois têm rotativamente acesso à direcção do governo. Os círculos plurinominais e as eleições em lista pelo método de Hondt são o seguro de vida da classe política. Apesar de o artigo 149º da CRP já admitir os círculos uninominais, remetendo a questão para a lei ordinária, nenhum desses partidos parece verdadeiramente interessado em promover essa alteração. Eles, como nós, lá sabem porquê: é que, a partir do momento em que cada um dos 230 deputados da Assembleia da República for individualmente escolhido pelas comunidades perante as quais são politicamente responsáveis, os directórios partidários serão inexoravelmente impedidos de colocar a seu bel-prazer os «boys» que ninguém conhece em lugares elegíveis. Os partidos terão de abrir-se a pessoas com reconhecido mérito e os seus aparelhos verão reduzido o poder que exercem sobre o Estado.
Reclamar a modificação do sistema eleitoral e a criação de círculos uninominais, seria uma exigência a fazer por uma sociedade civil que se estimasse, e que deveria unir transversalmente cidadãos de todos os quadrantes políticos. Como se vê pelo nosso exemplo histórico, não é coisa com que se possa contar em Portugal.