18.1.05

RESPOSTA A RUI BAPTISTA

A propósito deste meu desabafo futeboleiro, Rui Baptista, do Amor e Ócio, disserta assim:

«O que fez CAA reagir desta maneira foram os nervos. (...) É curioso que sempre que as coisas correm menos bem, os portistas mais inflamados alongam o olhar para a Luz e sacam velhos argumentos, que podem ter feito sentido há 20 anos, mas que hoje só servem para manter vivos tristes preconceitos. Um sinal de alerta e é vê-los correr para as barricadas do mais serôdio provincianismo, esquecendo os títulos europeus e as festas. Sofrem de um atávico complexo de inferioridade e não há nada a fazer

O texto merece alcançar o estatuto de cartilha. Estão aqui alinhavados os argumentos de sempre: o presunçoso rótulo de «preconceito»; o clássico argumento historicista-progressista "já fez sentido, outrora, em tempos que já lá vão - mas agora não, nem pensar"; o escolar «serôdio provincianismo»; rematando com o institucionalizado «atávico complexo de inferioridade».

A densidade das razões é enorme. Mas - respirando fundo -, para já, apenas me vou preocupar com o «serôdio provincianismo».

Em que consiste? Essencialmente, ser provinciano é possuir uma visão auto-limitada da realidade caracterizada por tomar a plenitude do que existe por aquilo que o olhar próprio alcança. Ser provinciano é circunscrever-se à chamada visão de campanário - o horizonte que dali se descobre é o mundo todo e nada mais importa para além disso.

Ora, o olhar do portista-portuense é exactamente o contrário. Forçado pela sua estranha inscrição num país em estado de irremediável umbilicalidade centralista (ontem como hoje, Caro Rui Baptista, ontem como hoje, não se iluda com as cores das novas embalagens), o portuense cedo se virou para fora deste espaço nacional (??!!), fechado, circular, bafiento, desonesto e parcial. O portuense percebeu-se face aos que estão longe, apartados deste microclima proteccionista, comodista, saudosista, fadista, compadrista, passadista, estatista e, claro, benfiquista.
O portuense, com a responsabilidade acrescida de, em Portugal, constituir o espaço mais relevante onde reside alguma massa crítica fora de Lisboa, fez-se por si e para si mas sempre com a consciência do muito que reside para além daqui. O portuense está à vontade em qualquer lugar da Europa ou do mundo - só se sente incomodado no ar abafado da caricatura de capital que lhe coube em sorte. O proverbial bairrismo do Porto é em tudo especial porque tende para o universal.

Pelo contrário, o lisboeta-tipo crê-se no centro do seu pequeno mundo. Julga que tudo é Lisboa e o resto uma paisagem mais ou menos irrelevante. Ainda acha que é importante, sobretudo no futebol. O lisboeta, na sua subespécie encarnada, supõe-se no centro de todas as coisas, acredita piamente que tudo fala de si e o discute. Que o mundo inteiro funciona como o caldinho em que ele marina. O mundo que ele vê é o único que ele julga que existe. O lisboeta, sobretudo na sua derivação benfiquista (o conhecido espécimen apelidado de benfiquista "do Norte" é uma aberração anti-natura, uma mutação genético-intelectual transplantado para um ambiente que lhe é adverso e em que está constantemente a dissimular), vive afogado em si, fechado no seu microcosmo, balindo fados choradinhos, figurando patéticos quintos impérios, imaginando glórias futuras à custa dos farrapos do já vencido.
O universo do lisboeta é reduzido e redutor - vê-se a si e julga-se o mundo; e julga o mundo apenas por aquilo que vê. O lisboeta é o provinciano mais acabado e grotesco de todos, é um quixotismo sem graça numa fantasia que roça a demência e que prejudica a alma do país.

E ser serôdio, o que é? Quanto à matéria em discussão, a resposta é excessivamente fácil: ser serôdio é acreditar que as coisas mudaram, que já não são o que eram. Que por artes mágicas ou alguma infusão divina o modo centralista de ver o país cessou ou foi atenuado.
Ser serôdio é presumir que as nossas vitórias os mudaram a eles (que continuam paranoicamente convencidos que todos os nossos títulos foram ganhos à custa das arbitragens!).
Ser serôdio é estar imbuído do espírito modernaço que crê que os caminhos inexoráveis do progresso e da evolução das coisas fizeram com que os dinheiros públicos não sejam desperdiçados onde sempre foram. Ser serôdio é cuidar que estar contra a mentalidade dominante é «preconceito». Ser serôdio é querer agradar aos geograficamente bem-pensantes para parecer em estado de segura serenidade enquanto se tenta disfarçar um sotaque imitando o outro. Ser serôdio é não reconhecer que em quase todas as artes e profissões continuam a existir dois países dentro deste: Lisboa e o resto, e que essa dualidade ainda faz toda a diferença excepto no futebol.

Não é por acaso que há tantos blogues do Porto, Braga, Coimbra, etc. - também será, sem dúvida, porque aqui escrevemos o que queremos, quando queremos e como o queremos, sem termos de mendigar o espaço de algumas linhas aos "colegas" que estão onde fica a sede de tudo e de mais alguma coisa neste rectângulo.