11.9.06

5 ANOS DEPOIS

Fui ver o filme "Voo 93". Sério, sóbrio, realista. Para além dos dados inequivocamente comprovados (mensagens, telefonemas e registos do avião gravados), o resto, resultado da imaginação dos argumentistas, parece bastante plausível. O filme não comporta uma mensagem explícita, para além daquela que o horror dos próprios factos implica. É quase impossível não nos identificarmos com aqueles passageiros e tripulação que, na pacatez das suas vidas, se viram confrontados com uma terrível imprecação da história.
Houve um momento que me atingiu especialmente - já quase no fim, perto da consumação da tragédia, os passageiros e os terroristas rezam ao seu Deus quase em uníssono: uns o padre-nosso; outros uma prece a Alá. Os que estão prestes a ser assassinados e aqueles que os vão matar, todos pedem o auxílio divino. Quase no mesmo tom e com o mesmo empenho, invocam a misericórdia de um Deus que, na ilogicidade da sua crença, os sustentará nas tarefas antagónicas de matar e de se salvarem. ###

Para mim, o significado foi uma redundância em relação àquilo que sinto - a religião divide, afasta, e faz nascer rancores irresolúveis. Da adoração das diversas crenças resultam as guerras mais insanas, os ódios mais terríveis, as incompreensões mais dilacerantes para a humanidade.

Do lado muçulmano, mais do que um problema civilizacional, a questão é religiosa. Uma visão fundamentalista, unilateral, totalizante. Similar a muitas que coexistem no cristianismo, sejam em versão evangélica ou na obediência romana. Mas que nunca se encontrarão porque a sua matriz é definirem-se como verdades isoladas e excludentes, por muito que essas crenças sejam quase-geminadas.

Une os fundamentalismos religiosos a necessidade de permanecerem fieis ao seu registo pré-moderno, apesar da razão, do conhecimento e da Ciência. Tanto pior para estas dimensões caso contrariem as verdades reveladas. Separa-as, fragmentando deploravelmente o mundo, o objectivo comum a grande parte das demais interpretações do religioso - só uma poderá prevalecer, a "deles", porque a "verdade" é única e absoluta.

A chave, a solução para isto tudo é a laicidade. O abandono do religioso para além da dimensão privada da vida de cada um. A prioridade à isenção e abstenção das regras, princípios, instituições e poderes públicos nos domínios do sagrado. Que apenas a cada um dizem respeito. Mas que são comprovadamente perigosíssimas se extravasam essa dimensão individual e se imiscuem no colectivo. Porque nenhuma "verdade", por si só, se consegue conter, restringir ou vedar a vocação de se revelar aos outros, de tentar impor regras comportamentais a quem não partilha desse sistema de crenças. A não ser que estas sejam obrigadas a manterem-se nessas fronteiras tão higiénicas. A isso, repito, chama-se laicidade e não consigo enxergar melhor remédio para sarar as feridas que a segmentação religiosa comporta, ontem ou hoje.

Os fundamentalistas do "lado de cá", por enquanto, estão relativamente circunscritos porque a nossa civilização foi progressivamente conquistando razão e humanidade. E porque as regras tidas e aceites do mundo em que estamos (e que eles tanto combatem apregoando a decadência de valores e a correspectiva pretendida indispensabilidade do religioso nas dimensões mais recônditas do colectivo, entre muitos outros fantasmas equivalentes) não lhes permite condutas semelhantes às que têm os fundamentalistas do "lado de lá" - no fundo não são iguais aos outros porque não podem. Graças à laicidade.

Os outros podem. E fazem. E cometem crimes. Porque têm a "verdade" na sua mão direita. Porque sentem um "chamamento". Porque lhes dizem que têm de matar. Porque o fim último de servir o seu Deus é sempre maior do que os crimes que cometem. Em nome do seu Deus. Seja ele qual for.