19.9.06

aborto, sexualidade e responsabilidade

1. Agora que finalmente assentou alguma da previsível pequena poeira aqui lançada sobre o aborto, e que o debate do tema sempre provoca, é chegado o momento de começar a analisar a substância desse problema e tentar contribuir para uma aproximação séria ao que vai ser colocado a referendo aos portugueses, no próximo mês de Janeiro. Porque é bom que os sectores que mais contestam a modificação da lei actual se convençam que o referendo vai mesmo realizar-se. E que a probabilidade de o voltarem a ganhar é, desta vez, muito reduzida. Por isso, em vez da gritaria e do histerismo habituais, infelizmente muito comuns de parte a parte, não lhes faria mal nenhum um pouco de sensatez.

2. Uma das formas possíveis e, infelizmente, relativamente frequentes de encarar o aborto em Portugal consiste em tentar diminuir a dimensão e o impacto social do problema, sugerindo que ele não tem a expressão que lhe querem dar. Daí a propor a manutenção das coisas como estão vai um pequeno e inevitável passo. Trata-se, obviamente, de uma afirmação absurda, que não tem sequer o estatuto maior de um argumento. Nas cabeças mais benévolas resulta de ingenuidade, cegueira ou de não querer olhar para a realidade. Não deixa, por isso, de ser um completo disparate, ao qual ninguém sensato e empenhado em enfrentar o problema poderá dar o mais pequeno crédito. Bastará, para quem quiser tirar dúvidas a esse respeito, falar com qualquer jovem que não tenha ainda vinte anos e perguntar-lhe o que conhece sobre o assunto. Ou repetir a mesma pergunta a um assistente social, a um padre, a um professor, ou a qualquer pessoa que lide com jovens (e com adultos), para saber que as coisas não são assim. Nem agora, nem de há muito tempo para cá. São, de resto, às centenas as clínicas, os consultórios, os gabinetes onde se fazem abortos por este país fora, a preços muito baixos e concorrenciais. Algumas destas casas têm mesmo anúncios nos jornais de referência. Outras são espanholas, com porta aberta em pontos fronteiriços, estrategicamente colocadas para receber pessoas com rendimentos mais elevados. De resto, o absurdo do «argumento» vai o ponto dele poder ser utilizado em sentidos opostos: se o problema não tem uma dimensão preocupante, tanto faz manter a lei vigente como alterá-la, já que em qualquer dos casos os prejuízos seriam mínimos.###

3. Como, também, não tem qualquer sentido afirmar-se que a lei actual é uma «lei morta», que só esporadicamente é aplicada, da qual não resulta a efectiva penalização de ninguém. O argumento é capcioso e francamente incomodativo, pelo menos para quem pugne pelo Estado de direito. E, também, poderia ser utilizado em sentido inverso do pretendido: a ser assim, mais vale metê-la na gaveta, já que ela não se cumpre e se não se cumpre não intimida ninguém. Há, contudo, neste argumento uma perversão que tem de ser exposta: a de que a justiça deve ser uma espécie de roleta russa que só acerta uma vez de muitas em muitas tentativas. Ora, para quem tem o Estado de direito como uma referência civilizacional, a justiça deve ser cega e igual para todos. Não um capricho do legislador que nos possa (ou não) sair em sorte. Daí, a repugnância de ver, de tempos a tempos, à boa maneira portuguesa, meia dúzia de mulheres, médicos e abortadeiras a serem julgados na praça pública, para sossego e tranquilidade das consciências mais exigentes.

4. Na origem do imenso problema que a prática do aborto constitui nas nossas sociedades e no nosso tempo, está a forma como nos relacionamos e como valoramos a sexualidade. De facto, na decorrência das décadas de 60 e de 70 do século passado, o sexo passou a ser um bem de fácil consumo e de acesso comum. Esta auto-designada «revolução sexual» não comportou qualquer valoração da sexualidade para além do hedonismo e do prazer momentâneo: os homens e (sobretudo) as mulheres tinham direito ao prazer e ao seu corpo, e a sexualidade era um simples meio para alcançar essas finalidades, nas quais muitos viam uma elaborada forma de «libertação». Não cabe aqui, pelo menos por hoje, tecer considerações alongadas a este respeito. Mas não é necessário ler Julius Evola para saber que a sexualidade é muito mais do que isso e que possui uma dimensão transcendente, para não dizer sagrada, ao ponto de dela poder resultar o enigma maior da existência humana, que é a criação da vida. O sexo entra hoje nas nossas vidas e nas vidas dos nossos filhos, como nunca sucedeu em tempo algum. Banalizou-se a um ponto tal que qualquer criança com 9, 10, 11 anos fala sobre o assunto que, de resto, viu e ouviu na televisão ou na Internet. Esta é a origem do problema actual do aborto em Portugal e na generalidade dos países europeus: a falta de preparação que as crianças, os jovens e os seus pais e educadores (eles, também, resultado de uma educação sexual inexistente ou muito deficitária) têm para lidar com um fenómeno que positivamente invadiu a totalidade das nossas existências, numa dimensão sem igual, seja no tempo ou no espaço de cada um.

5. Exactamente no dia de ontem (18 de Setembro de 2006), o filho de um amigo meu recebeu a sua primeira aula de Introdução ao Direito, num liceu público do Porto. O professor não teve melhor forma de se apresentar aos alunos que não fosse assumir a sua homossexualidade e manifestar o seu incómodo por não se poder casar em Portugal. Este acontecimento, que não me atrevo a afirmar ser comum nas escolas portuguesas, indicia, contudo, uma predisposição em relação à sexualidade por parte de um educador que não é muito saudável. Não que o docente em causa não tenha o direito de ter as opções que entender e afirmá-las nos sítios próprios. Mas é grave que um homem adulto, professor, que se há-de ter submetido a concurso público para ocupar as funções que desempenha, que será certamente acompanhado e avaliado pelos seus superiores hierárquicos, e que é suposto ensinar Direito a jovens, ache que a sua (homos)sexualidade deva fazer parte do seu curriculum vitae e que, por consequência, a exponha no seu local de trabalho e aos seus alunos, em vez de a reservar para os seus sentimentos e para a sua intimidade. Como, certamente, muitos outros, sejam pais, filhos, professores, educadores, ou outra coisa qualquer, entenderão, por aí, que a sua sexualidade é do domínio público, assunto corriqueiro de conversa de mesa de café.

6. A maneira como lidamos com a sexualidade está, assim, na génese de comportamentos desregrados e prejudiciais, porque precoces, excessivos e não suficientemente entendidos, que são cada vez mais cedo «assumidos» pelos jovens. Que daqui resultem gravidezes indesejadas, e se recorra ao aborto como uma solução fácil, que comporta, de imediato e na aparência, menos consequências gravosas para os progenitores, é um pequeno passo. Obviamente, quando falamos de pessoas muito jovens e imaturas, que muitas vezes agem sem conhecimento e consentimento dos pais, outras vezes com a sua expressa aprovação, não parece sensato reclamar a aplicação de leis penalizadoras por parte do Estado. Alguém minimamente lucido pode achar que é mandando estas pessoas para a cadeia, ou para a barra do tribunal, que se resolve o problema ou se castiga a dimensão plena dos seus actos? É que não só faltam aqui alguns elementos tipo da responsabilidade jurídico-penal, como e sobretudo, falta moral e autoridade ao Estado para punir. Principalmente se este se pretender assumir como legal representante da comunidade, quando esta continua passivamente a olhar a aprendizagem e para a educação sexual como coisa de importância secundária.

7. Aliás, a este respeito, não deixa de ser curiosa e sintomática a quase absoluta ausência da Igreja portuguesa em torno da temática da sexualidade e do aborto. Se, por exemplo, visitarmos o site da Conferência Episcopal Portuguesa e se formos ao link da Agência Eclésia - Movimentos e Obras, no qual se noticiam o que julgo serem os acontecimentos e factos mais relevantes da vida da Igreja em Portugal, deparamo-nos com o espantoso facto de que em 567 notícias, repito, 567 notícias, que ocupam um período temporal que vai de Janeiro de 2003 a Setembro de 2006, e temáticas que oscilam da «santidade da empresa» ao «Islão», só duas referirem a problemática de sexualidade e do aborto! Uma de 12 de Julho de 2005 (Comunicado final da Acção Católica Rural sobre Educação sexual e protecção da vida humana) e outra de 18 de Março de 2003 (Congresso da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, sobre «Amor, Sexualidade, Educação, Procriação»). Eu sei que é devida à Igreja muita obra social no apoio a mães solteiras e a crianças abandonadas ou em situação difícil. Mas sei, também, que a Igreja nunca teve, ao longo da sua História, uma relação linear e tranquila com a sexualidade. Na verdade, embora não conheça muito da vida da Igreja Católica em Portugal, pelo que ali me é dado ver a sexualidade não parece ser matéria a que se dê prioridade.

8. Obviamente que, nestas circunstâncias, nove anos volvidos sobre o primeiro referendo ao aborto feito no nosso país, a Igreja terá alguma dificuldade em voltar a ser ouvida sobre esta matéria. Porque os nossos jovens podem ignorar muita coisa sobre o mundo e a vida; mas não desconhecem que a sexualidade e o aborto se encontram intimamente ligados, ou melhor, que a forma como vêem o segundo está directamente relacionada com o modo como lidam com a primeira. Mais uma razão para, salvo melhor opinião, o discurso sobre o aborto dever ultrapassar as banalidades e os lugares-comuns habituais, se quem defende o actual status quo o quiser preservar no próximo referendo. Pela amostra que por aqui tenho tido, não acredito que isso venha a suceder.