19.9.06

Imposto automóvel não é valor acrescentado*

Os preços dos automóveis novos em Portugal são dos mais elevados da Europa. Porquê, perguntará o leitor. A resposta é, naturalmente, simples: impostos.###
Aos preços base, que pouco variam de Estado para Estado, há que acrescentar, logo no momento da compra, dois impostos: o Imposto Automóvel (IA) e o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). Acontece que em Portugal, o IVA incide não só sobre o preço base, mas também sobre o próprio IA. Dito de outra forma, o Estado acrescenta valor aos automóveis, através da imposição do IA, pagando os consumidores IVA sobre esse artificial acréscimo de valor. Imposto sobre imposto, portanto. Este esquema inflaciona artificialmente os preços de venda, com prejuízo para vendedores, consumidores e mesmo para a segurança rodoviária, já que torna mais onerosa a aquisição de veículos mais seguros.
Ciente do problema, a Comissão Europeia apresentou em Julho de 2005 uma proposta de directiva que visa, a prazo, extinguir ou, pelo menos, reduzir substancialmente o IA e impostos equivalentes existentes em vários Estados, substituindo-os, progressivamente, por um imposto anual, algo distinto do actual imposto municipal sobre veículos e porventura mais próximo do Imposto Municipal sobre Imóveis (um puro imposto sobre o património). A mudança, inevitável, permitirá uma descida substancial do preço dos automóveis novos.
Mas já hoje se pode questionar a licitude da cobrança de IVA sobre o IA. Independentemente da (i)moralidade da cobrança de um imposto sobre outro imposto, a verdade é que o direito comunitário permite que o IVA possa incidir sobre outros impostos. Porém, o Tribunal de Justiça entende que o IVA só pode incidir sobre outros impostos ou taxas quando estes tenham uma ligação directa com a entrega ou fornecimento do bem cuja venda dá lugar à cobrança de IVA, o que poderá não ser o caso do IA.
Num recente acórdão (caso De Danske Bilimportører, de 1 de Junho de 2006), em cuja deliberação participou o juiz português Cunha Rodrigues (antigo Procurador Geral da República), o Tribunal de Justiça comunitário concluiu que um imposto de matrícula existente na Dinamarca, equivalente em larga medida ao nosso IA, não deveria ser considerado para efeitos de liquidação do IVA, já que aquele imposto dinamarquês, apesar de ser pago (em regra) pelo vendedor do veículo novo, não tem ligação directa com a entrega, devendo antes ser considerado uma despesa feita por conta do comprador, que este reembolsa no momento da compra. Ora, de acordo com a Sexta Directiva do IVA, que o Código do IVA, nesta parte, transcreve, tais despesas não podem ser contabilizadas no valor tributável que serve de base ao cálculo do IVA.
Ainda que alguns aspectos do procedimento de liquidação do IA sejam diferentes do imposto de matrícula dinamarquês, a verdade é que, também em Portugal, se trata de um imposto cujo pagamento constitui condição indispensável à matrícula do veículo e que não é consequência directa da venda: há lugar à restituição do imposto eventualmente pago se o automóvel for exportado antes de ser matriculado em Portugal; o imposto pode ser devido sem que haja qualquer transacção (no caso de alguém comprar um veículo noutro estado membro e decidir, meses ou anos depois, matriculá-lo em Portugal); as isenções e/ou reduções do IA têm em conta as características do comprador e não as do importador ou vendedor. Nesta medida, apesar de o IA ser pago pelo importador antes da primeira venda, este pagamento não é mais, à semelhança do que sucede na Dinamarca, do que uma espécie de pagamento feito por conta do comprador. Assim sendo, de acordo com a jurisprudência comunitária, o IVA não deveria incidir sobre o IA. Este entendimento permitiria poupar mais de 1000 euros num automóvel com 1500 cc..
Em 2005, o IA gerou receitas de aproximadamente 100 milhões de euros mensais, de acordo com dados da Direcção Geral das Alfândegas, aos quais correspondem mais de 20 milhões de Euros/mês de IVA cobrado sobre o IA. Num só ano, o Estado português cobrou duzentos e quarenta milhões de euros de impostos de forma (muito provavelmente) indevida.

*texto publicado n'O Primeiro de Janeiro