22.9.06

O Direito à Felicidade

Para quem ainda não conhece Pedro Arroja...
Via O Blogue de Miguel Duarte

«A tradição constitucional americana, com o seu "direito à procura da felicidade", conduz à limitação dos poderes do estado, enquanto a tradição francesa e portuguesa, com o seu "direito à felicidade", conduz ao alargamento progressivo dos poderes do Estado e, no limite, a uma sociedade totalitária.

"Nós consideramos estas verdades como evidentes em si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que eles são dotados pelo criador com certos direitos inalienáveis, que entre estes direitos estão o direito divino à vida, à liberdade e à procura da felicidade."

Esta é, provavelmente, a frase mais citada da declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776). Mais adiante, diz a Declaração de Independência: "Que, para garantir estes direitos, governos são instituídos entre os homens, derivado os seus justos poderes do consentimento dos governos."

Recentemente, o ministro Fernando Nogueira, discursando na sua qualidade de novo líder do PSD, atribuiu aos Portugueses mais um direito, para além daqueles que a Constituição já lhes confere; o direito á felicidade.
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A primeira Constituição da era moderna é a Constituição Americana. A América foi colonizada inicialmente por colonos europeus pobres, fugindo ao absolutismo do Estado que então imperava na Europa - um absolutismo do Estado que tornava remota, senão mesmo nula, a possibilidade de qualquer homem que tivesse nascido pobre de ascender na vida pelos seus próprios meios. Em última instância, foram os abusos cometidos pelo estado britânico a causa próxima da revolução da nação americana.

Os fundadores da América possuíam, por isso, uma concepção particular dos direitos humanos e da função do Estado em relação a eles. Na sua concepção, os direitos Humanos possuem uma origem sobrenatural ("todos os homens" são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis..."), competindo ao estado garantir esses direitos ("Que, para garantir estes direitos, governos são instituídos entre os homens..."). Nunca ocorreria aos fundadores da nação americana tinha demonstrado conclusivamente, aos seus olhos, que o Estado era o principal violador dos direitos humanos. Pelo contrário, toda a história que conduziu à génese da nação Americana tinha demonstrado conclusivamente, aos seus, que o Estado era o principal violador dos direitos humanos, tal como Deus os havia concedido aos homens. A própria Declaração de Independência não é senão um largo repositório de tais violações. Por isso, a ideia de base que preside à Constituição Americana - provavelmente ainda hoje a mais admirada e imitada de todas as constituições ? é a de limitar, e limitar severamente, os poderes do estado, por forma a que ele não possa interferir com os direitos que Deus conferiu aos homens, entre os quais o direito á vida, o direito á felicidade e o direito à procura da felicidade.

Em relação à felicidade, os fundadores da nação americana foram cuidadosos ao referir-se a ela. Eles não disseram, como o Ministro Fernando Nogueira, que as pessoas tinham o "direito á felicidade". Ao declararem que as pessoas tinham o direito à procura da felicidade, os fundadores americanos quiseram significar, em primeiro lugar, que a felicidade é uma matéria de definição individual e, em segundo lugar, que ninguém - a começar, naturalmente, pelo principal violador dos direitos humanos, o Estado - poderia interferir com a procura, por parte de cada, daquilo que ele considera ser a sua felicidade. Pelo contrário, o "direito à felicidade" afirmando pelo Ministro Fernando Nogueira é uma coisa muito diferente, e insere-se na tradição constitucional saída da revolução Francesa, e que Portugal acabaria por importar. Os revolucionários franceses olhavam o Estado como um instrumento poderoso para mudar a sociedade. Na sua ânsia de elevarem a condição das classes mais pobres do ancien regime, eles foram levados a utilizar o Estado como instrumento de atribuição de direitos. Ao contrário da tradição americana, em que os direitos humanos são atribuídos por Deus, competindo ao Estado garanti-los, na tradição francesa o Estado é ao mesmo tempo a fonte desses direitos e o seu garante. Na realidade, a tradição constitucional americana, Com o seu "direito à procura da felicidade", conduz à limitação dos poderes do Estado e, em última instância, a uma sociedade livre, enquanto a tradição francesa e portuguesa, com o seu "direito à felicidade" conduz directamente ao alargamento progressivo dos poderes do Estado e, no limite, a uma sociedade totalitária.

A Constituição portuguesa è, em primeiro lugar, um repositório de direitos atribuídos pelo estado aos cidadãos não apenas dos chamados direitos individuais - como o direito á vida, à liberdade, à igualdade de tratamento perante a lei - mas também dos chamados direitos sociais - como o direito ao trabalho, o direito à reforma, o direito à saúde, o direito á educação.

Os fundadores da nação americana nunca teriam formulado assim estes direitos. Eles teriam dito que as pessoas teriam direito à procura de trabalho, à procura de uma reforma, à procura de saúde, à procura de educação, criando assim ao estado uma obrigação de carácter negativo - a de não poder interferir com os comportamentos das pessoas orientadas para a obtenção, de reforma, de saúde ou de educação. Pelo contrário, a Constituição portuguesa, ao formular esses direitos que o faz ? atribuindo às pessoas o direito ao trabalho, à reforma, à saúde e educação a todos os cidadãos ? cria ao Estado uma obrigação de carácter positivo - a de dar trabalho, reforma, saúde e educação a todos os cidadãos. E è assim que o estado português è levado a adoptar políticas activas de emprego, de reforma, de saúde e de educação.

Para garantir esses direitos, o Estado tem, em primeiro lugar, de definir o que é emprego, o que é reforma, o que é saúde e o que é educação. E, tendo-o feito, ele legisla então para garantir aos cidadãos trabalho, reforma, saúde e educação deixa de ser definido pelos cidadãos e passa a ser matéria de definição oficial. Nesta tradição, nenhum cidadão pode definir aquilo que constitui educação para os seus filhos; è o Estado que a define e a impõe uniforme e obrigatoriamente a todos os cidadãos; o mesmo sucede com a saúde, com o Serviço Nacional de Saúde; com a reforma, através do sistema obrigatório de Segurança Social; e com o emprego, através das leis que definem e regulamentam ao detalhe o contrato de trabalho.

Ao procurar garantir os chamados direitos sociais, o Estado é invariavelmente levado a coarctar os direitos individuais - particularmente o direito à liberdade. Assim, as leis que visam garantir o direito ao trabalho coarctam a liberdade dos empregadores e, frequentemente, a dos empregados também; o sistema obrigatório de segurança Social impede cada cidadão de escolher o seu próprio regime de reforma; os sistemas colectivizadores da educação e saúde retiram a todos os cidadãos a liberdade de escolherem os serviços de educação para os seus filhos e de saúde para si próprios.

Ter um emprego, uma reforma, saúde e educação são elementos que contribuem para a felicidade das pessoas. Mas aquilo que o Ministro Fernando Nogueira nos propõe é um "direito à felicidade" abrangente, que, para além do emprego, da reforma, da saúde e da educação, passa a incluir também aspectos de natureza espiritual, estética, literária, sexual até, que contribuem para a felicidade de um homem. Para concretizar este direito, o Estado será inevitavelmente levado a dotar o Pais de um definição oficial de felicidade, nas suas várias vertentes (espiritual, sexual, literária, estática), para além daquelas onde uma tal definição oficial já existe (trabalho, reforma, saúde, educação, etc.) e, em seguida, a adoptar as políticas (espirituais, sexuais, literárias, estéticas) necessárias para realizar a felicidade, tal como ela è oficialmente entendida. Quando tudo estiver feito, o país será então o modelo acabado de um Estado totalitário, tal é o fim a que o "direito à felicidade" inevitavelmente conduz.»


Pedro Arroja (Diário de Notícias, Domingo 5 de Março 1995)