Habitualmente assume-se o 25 de Novembro de 1975 como o último dia do PREC, essa espécie de acne revolucionário que nos atacara serodiamente alguns meses após o 25 de Abril e se acentuara a 11 de Março de 1975. Consoante as convicções políticas de cada um assim se optará por definir o 25 de Novembro como o términus do sonho ou o final da deriva totalitária. Mas independentemente de tudo isso e de muito mais, o PREC foi também um tempo necessário. E desde o dia 11 de Novembro de 1975 que o PREC já não fazia falta alguma: na véspera, Leonel Cardoso, alto-comissário em Angola, declarara em Luanda 'Portugal entrega Angola aos angolanos'. Nessa mesma noite Agostinho Neto declarou a independência de Angola. Desde esse momento, em Portugal, as teses sobre os modelos revolucionários peruano e argelino em que nos deveríamos inspirar, as campanhas de dinamização cultural, as ocupações, as ameaças de julgamentos populares, enfim a própria revolução deixavam de ser necessárias como catadupa de factos que mantinham os portugueses em constante estado de atordoado sobressalto desde o 28 de Setembro de 1974.###
Não creio que Portugal no pós 25 de Abril tivesse estado seriamente à beira de ser a Cuba da Europa. A Geografia pesa e manter no extremo europeu do Atlântico um país comunista era caríssimo no sentido económico e também político do termo. E isto que já fora em parte válido para as mudanças na estratégia de Estaline para com os comunistas espanhóis, nos anos 30, era ainda mais óbvio para Brejnev em relação ao Portugal dos anos 70.
Em Novembro de 1975, resolvida a questão essencial e que era a afectação imediata ao bloco soviético dos novos países de expressão portuguesa, tornava-se absolutamente dispensável, quase contra-indicado, manter erguida, em Portugal, a tenda da revolução, tenda essa aliás onde os grupos esquerdistas por insânia própria ou porque devidamente instrumentalizados causavam estragos cada vez maiores. Após o 25 de Novembro de 1975 a revolução em Portugal tornou-se uma espécie de 'recuerdo': murais, posters, e muitas baladas cheias de ceifeiras, foices e espingardas ficaram por aí para a recordar.
Quando nesta semana alguns militares desfilaram fardados em Lisboa imediatamente se associaram estas contestações a esse outro tempo em que qualquer passeata castrense ou almoço de sargentos dava azo a especulações. Para ajudar a compor o flash back houve até quem desabafasse 'Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril!'
Mas a manifestação protagonizada esta semana pelos militares remete não apenas para as reivindicações que os levaram ao 25 de Abril mas também e sobretudo para os compromissos em que se fundou a sociedade portuguesa após o 25 de Novembro de 1975. E desses compromissos existe um que é incontornável. Primeiro chamou-se socialismo. Depois estado social.
Todos os partidos presentes na Assembleia Constituinte em 1975 defenderam a instauração do socialismo em Portugal nos projectos de constituição que apresentaram. O MDP-CDE propunha 'a instauração de uma sociedade socialista'. O PCP pretendia 'eliminar o poder dos monopólios e latifundiários e abrir caminho à transição para o socialismo'. O PS propunha-se também caminhar para 'o socialismo, entendido este como o poder democrático dos trabalhadores, com vista à instauração de uma sociedade sem classes'. O PSD dizia que Portugal devia 'construir uma sociedade socialista'. O CDS dizia defender uma 'via original para um socialismo português'. Curiosamente apenas a UDP destoa em tal consenso defendendo uma espécie de estado de luta permanente dirigido pela classe operária com vista 'à emancipação total e completa das massas exploradas'. Ou seja em 1975, fosse por razões instrumentais ou de convicção, a verdade é que desde a UDP ao CDS todos os partidos coincidiam em que a sociedade portuguesa devia ter o socialismo consagrado no artigo primeiro da sua Constituição. Já nos anos 80, a 'sociedade sem classes' passou a estado social ou 'sociedade livre, justa e solidária'.
Assim, os manifestantes civis e militares dos anos 70 após terem arrumado placidamente os cartazes e cortado as barbas, viveram na forte convicção de que o futuro seria uma espécie de aquisição permanente de direitos e benesses estatais. Entretanto os portugueses trocavam os comícios pelas telenovelas e viam em cada subsídio, regime especial, centro disto e daquilo... um indicador do progresso tão fiável mas bem mais palpável que as cenas de nudismo que iam animando os écrans e as praias nacionais.
Até agora nunca conseguimos e muito menos quisemos discutir se este modelo é viável e, mesmo que o seja, qual o preço que pagamos politicamente por ele. Mas vamos ter de o fazer porque agora os contestatários, os grevistas e os manifestantes não gritam palavras de ordem contra patrões ou empresas. Aliás, a não ser que anuncie o encerramento da empresa, patrão algum deste país se confronta hoje com a mais leve ameça de greve. As reivindicações de hoje não se dirigem aos capitalistas mas sim aos contribuintes porque são os contribuintes quem sustenta o ensino, a saúde, os transportes públicos, as forças armadas... ou seja, os sectores em que presentemente existe conflitualidade. O ex-libris desta transformação é sem dúvida aquela imagem dos membros da PSP disfarçados de assaltantes de bancos ou de terroristas numa conferência de imprensa em que davam conta das suas exigências. E agora fazemos o quê?
Para já pagamos impostos e assistimos à anatemização dos bodes expiatórios. Estes já não são nem o latifundiário abstencionista, nem o grande empresário ou capitalista como depreciativamente eram outrora tratados. Nem andam por aqui aquelas figuras tão úteis nos momentos difíceis como os sabotadores ou os intermediários. Agora os bodes expiatórios são aqueles que fogem aos impostos, a que posteriormente se juntaram os que pagam impostos mas não pagam tudo o que seria devido e aqueles que, como beneficiários, usufruíam de regimes especiais agora designados como benesses ou privilégios.E assim, com uns e outros devidamente expostos ao odioso da opinião pública, lá vão cumprindo a função de adiar a pergunta inevitável: mesmo que a evasão fiscal desaparecesse e que todos os regimes especiais fossem extintos é sustentável este sistema?
E sobretudo porque se há-de optar sempre pela solução que nos retira liberdade? Por exemplo, o que estava errado com o regime especial dos jornalistas era estes não terem de ir ao centro de saúde ou os outros utentes do SNS terem obrigatoriamente de se inscrever no centro de saúde da sua área de residência, centros esses que, tal como acontece com as urgências hospitalares, têm vindo a diminuir a sua oferta?
Triste país este em que a determinação do grau de privilégio passa pelo poder que o estado tem sobre nós. E vice-versa.
PÚBLICO 25 de Novembro