A posição que a generalidade da esquerda defende em relação ao aborto está em contradição com as restantes causas e ideias que essa mesma esquerda defende.
Assim,
1. A esquerda gosta de defender os mais fracos, mas no caso do aborto toma partido contra a parte mais fraca. Tendo em conta que o estatuto do feto é no mínimo discutível, não se percebe porque é que não existe pelo menos um grupo de esquerda que dedique mais energia a defender o feto que a defender o lince da Serra da Malcata.
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2. A esquerda tende a defender o controlo centralizado da sociedade e uma certa moralidade pública em questões como o emprego, a saúde e a educação. Mas no caso do aborto a esquerda defende que a decisão deve ser tomada de forma descentralizada por cada mulher. Temos então pessoas para quem a mulher tem todo o direito de escolher o aborto, mas já não deve ter o direito de comprar medicamentos livremente ou o direito de escolher a escola do filho.
3. Para a esquerda a solução para a miséria é o apoio do estado. Nunca a iniciativa dos indivíduos para resolver os seus problemas. Mas quando se coloca a questão das mães que não têm condições para ter filhos a esquerda não defende mais subsídios, defende liberdade de escolha. Uma liberdade de escolha que, por só ser possível à custa de um potencial ser humano, é ainda mais radical que aquela que produz a chamada selva capitalista.
4. A esquerda não reconhece as virtudes da liberdade de escolha quando se fala em questões económicas e sociais, excepto quando se fala de aborto. Toda a actividade económica e social tem que ser regulamentada porque a ordem espontânea é uma selva e as pessoas precisam de ser governadas e orientadas. A única situação em que a liberdade individual é virtuosa é no caso do aborto.
5. A esquerda gosta de regular os mais ínfimos detalhes da actividade privada, como se viu no caso dos arredondamentos dos juros ou no caso da regulamentação dos períodos de cobrança dos parques de estacionamento. Mas no caso do aborto é contra qualquer tipo de regulamentação.
6. A esquerda aceita e pratica uma certa moralidade de estado. É por isso que podemos ver ministros preocupados com questões que são do âmbito da vida privada. Temos ministros e secretários de estado a zelar pela alimentação das crianças, pela saúde dos fumadores e pela saúde das anoréticas. Temos serviços públicos para controlar o consumo de alcool e de droga pelos jovens, para proteger mulheres em situação familiar difícil e para promover a igualdade entre homens e mulheres na sociedade. Fazem-se campanhas pública contra o tabaco, o alcool, a violência doméstica e a favor da condução segura. Mas nunca foi feita uma campanha contra a prática de aborto. Ou seja, para a moralidade de estado que existe em Portugal fumar um cigarro é mais grave do que fazer um aborto.