3.4.05

UM LEGADO CHAMADO LIBERDADE



«Mas que eu vos abra inteiramente o meu coração, meus amigos:
se houvesse deuses, como suportaria não ser Deus? Portanto, não há deuses»

Zaratustra


Nasci e vivi parte da minha adolescência num mundo bipolar, monocromático, pintado a preto e branco, com laivos de cinzento em permeio. Dividido em dois por uma linha de fronteira estabelecida por um muro construído em Berlim, Terra do Meio, onde um Reich de mil anos lançara o seu terror espectral sobre a humanidade. Que, quando findou, em vez da Liberdade viu chegar os tanques imperiais dos czares, vindos das planícies geladas do leste.

Nesse mundo e nesse tempo, a esperança parecia vã. Ela não se conseguia erguer perante a força bruta dos exércitos e a opulência das tiranias. Na Jugoslávia, libertada e escravizada pelo partisan Tito, na Hungria, onde o «internacionalismo proletário» se fizera anunciar pelos tanques soviéticos a «pedido» de Kadar, na «primavera de Praga», do infeliz Dubcek, na Polónia e em Berlim. A fraqueza e a força da Liberdade exprimiram-se no sacrifício solitário de Ian Palach, jovem estudante checo que se imolou frente aos tanques invasores da União Soviética, ícone perfeito da vontade e da impotência com que esses povos oprimidos ansiavam ser livres.

Consolidadas as posições europeias e asiáticas, adquiridas no desgoverno de Ialta, o Império reforçou-se na Ásia e voltou-se para África e para o continente americano. Alguém chamou a isto a «estratégia da tenaz», quedando-se no centro das suas pinças impotente e insegura, a parte ainda livre da Europa central e ocidental. À humilhação crescente dos EUA, no Vietnam, e à crise moral em que a «Águia» se deixara afundar, à Europa livre não restava senão a capitulação de Willy Brandt e da sua «Östpolitik». Não fossem os tanques russos derrubarem o «muro», como retratava «Reds Down», um filme «reaccionário» de John Millius, que muitos receavam tratar-se de uma antevisão da História emergente. É que, por mais estranho que nos possa hoje parecer, por esta altura, o «socialismo real» era bem real. E o medo que o Ocidente lhe tinha, também.

De tal forma que, em 1978, quando Karol Wojtyla sucedeu a João Paulo I, malogrado Papa que não resistiu 33 dias na cadeira de Pedro, a opinião dominante viu a sua eleição como uma cedência política ao leste. Ele, que vinha de um país comunista, era, de facto, ao fim de 455 anos de História da Igreja e do Papado, o primeiro a ocupar essas funções sem ter nascido em Itália. Logo a seguir a um pontificado tão breve, talvez mesmo «interrompido» para dar espaço a outras aspirações.

A mesma lógica conspiracionista que, à época, o via como um emissário vermelho, terá, mais tarde, vislumbrado um eixo reaccionário e anti-progressista na aliança «reagano-papista», como era uso chamar-se, na década de 80, à «entente cordiale» estabelecida entre João Paulo II e o Presidente Reagan e a sua aliada europeia, a Srª Thatcher. A teoria da conspiração é sempre um consolo para as cabeças privilegiadas e para as grandes inteligências, que tudo sabem e tudo perscrutam. Não está ao alcance dos mortais comuns.

Foi, porém, com gente vulgar e comum, que Wojtyla lançou as sementes da revolta na Polónia. Com Walesa e os operários do «Solidarnosc», que colheram a sua força na esperança da liberdade que o Papa simbolizava, ele que, como eles também, era Polaco e do povo. Graças a ele e à Fé que nele tinham, os mineiros de Gdansk fizeram a revolução e, com ela, dinamitaram o Império Vermelho, o «Império do Mal», como lhe chamou apropriadamente Ronald Reagan. Eles foram o verdadeiro «cavalo de Tróia» do Império Soviético. Quem não compreender a importância da Fé na História do Mundo e desprezar aí a sua importância, nada percebe do Mundo, da História e dos Homens que lhe dão corpo.

No dia da sua morte, sem encómios de circunstância ou elogios de oportunidade, sem entrar nas análises psicanalíticas sob o Homem e cada um dos seus passos e gestos, sem proceder aos entediantes julgamentos do «deve» e do «haver» do seu papado, quer sejamos fervorosos crentes ou proclamemos, como Zaratustra, «a morte de todos os deuses», mas, também, sem receio dos chavões banalizadores dessa vulgaridade em que se transformou o «politicamente correcto», há que reconhecer que João Paulo II nos deixa a todos um enorme legado chamado Liberdade.