(Esta posta é constituída pelos tópicos preparados para a intervenção de ontem, dia 8, no "Choque Ideológico", na RTPN. Optei por os publicar exactamente como estão, sem qualquer revisão)
###- Hoje foi o último dia de Jorge Sampaio como PR - fecha-se um ciclo que não teve nada de bom para o país e para a Democracia;
- O estado geral de descrença nas instituições e no nosso destino colectivo, enquanto nação, atingiu limites quase inimagináveis antes deste triste decénio - estou convencido de que apenas o facto de estarmos inseridos na UE nos salvaguardou de abalos maiores e de crises ainda mais angustiantes;
- Ao contrário do que afirma o Editorial de hoje do DN, de António José Teixeira, a "normalidade" (?!) não derivou de qualquer comportamento de Jorge Sampaio, por acção ou por omissão, mas sim de estarmos num amplo espaço de indiscutível estabilidade democrática;
- Mas, pelo contrário, a acção dos agentes políticos nacionais, com Jorge Sampaio à cabeça, dificilmente poderia obter resultados piores.
SAMPAIO - PERSPECTIVA INSTITUCIONAL
SAMPAIO - ASPECTOS PESSOAIS
A QUESTÃO GERACIONAL
SAMPAIO E O MODO DE SER PORTUGUÊS
DEMOCRACIA
SAMPAIO - QUESTÕES CONCRETAS
SAMPAIO - QUESTÕES GERAIS
- A lógica presente nos louvaminheiros de Jorge Sampaio, quase omnipresentes na opinião publicada, quer tenham sido recentemente condecorados ou não, tem-me deixado atónito e, até, indignado.
- De uma maneira geral os autores dos louvores de serviço - destaco, pela negativa, o artigo de Medeiros Ferreira, ontem no DN, que só não é inenarrável porque contém uma confissão de amizade que o elucida - parecem querer impor o seguinte silogismo simplista e impossível:
- Nos últimos 10 anos este país andou para trás;
- Qualquer que seja a questão nacional que se escolha (Educação, Saúde, Justiça, Economia, Finanças Públicas, Desemprego, Cidadania, respeito pelas liberdades fundamentais, Agricultura, Indústria, Ordenamento do Território, na qualidade de vida dos portugueses, credibilidade das instituições políticas, capacidade de auto-regeneração do sistema político, qualidade dos agentes políticos, o estado de depressão colectiva em que estamos enquanto nação, no fosso de descrença em nós próprios, etc.) o Portugal está muito pior do que há 10 anos;
- No entanto, nenhuma responsabilidade pode ser assacada ao titular do primeiro órgão de soberania durante esse período - assim, o PR, dito "o primeiro magistrado da nação", fica ilibado de qualquer comprometimento com estes 10 anos negros em que estivemos;
- Ou seja, pela voz dos seus próprios aduladores nesta tentativa forçada de justificação e desculpabilização, o cargo de PR não faz qualquer diferença, não conta nem para o bem nem para o mal neste país;
- Paradoxalmente, o esforço hercúleo de ilibação acaba por comprovar a desnecessidade da figura - se o que aconteceu de mal neste país (e muito foi) não teve a influência do PR, então, para que é que este serve?
- Mais do que nunca, após 10 anos de Jorge Sampaio, e face ao juízo que dele fazem os cronistas da Corte, deve perguntar-se qual a utilidade do cargo de Presidente da República ? Qual é o seu verdadeiro papel (para além dos ditames genéricos gizados na CRP), qual a sua utilidade na democracia portuguesa, face à natural preponderância do Chefe do Governo ?
- Depois dos panegíricos que tenho ouvido e lido por todo o lado, nesta compulsividade de maneirismos de Corte que canta loas em uníssono neste final de mandato, considero que o contributo do actual titular do cargo para se alcançar uma resposta é assinalável: graças à actuação de Jorge Sampaio percebemos que o Presidente da República serve para muito pouco !
- É o Presidente da República um mero distribuidor de alguns cargos e muitas duvidosas honras?
- A própria noção de Presidente da República parece ser, cada vez mais, uma contradição em si mesmo, pois nasce da - patética e escusada - tentativa de substituir a figura caduca do Rei. E, se na 1ª República, de algum modo, isso foi conseguido já durante todo o período do Estado Novo se tornou patente a inutilidade e, até, o ridículo da manutenção constitucional de tal cargo.
- A situação não é, hoje, muito diferente. Ultrapassados os equívocos do período pós-revolucionário, tornou-se óbvio que a serenidade do regime democrático passava pelo esvaziamento de importância constitucional do Presidente da República. Privado de verdadeiro poder, resta agora ao titular da função o exercício daquela amálgama confusa a que os entendidos nas coisas da Corte costumam chamar a "magistratura de influência".
- Não existiram causas, momentos, intervenções de vulto. Mesmo em relação a Timor, Sampaio e Guterres atropelavam-se, repetiam-se, nenhum deles parecendo saber qual o seu lugar; chegaram a ser confundidos na imprensa internacional.
- Ou seja, este é talvez o cargo público onde se torna mais perceptível a directa relação entre a dimensão do cargo e a daquele que o exerce.
- Ora, por mais esforços que faça, não me é possível recordar uma única questão nacional onde o actual Presidente tivesse dado um contributo decisivo - o desfecho da crise santanista foi um arremedo típico de quem é fraco;
SAMPAIO - ASPECTOS PESSOAIS
- Mário Soares marcou a Presidência graças ao seu estilo e à sua inteligência política. Jorge Sampaio não deixa qualquer marca exactamente pelas mesmas razões (HISTÓRIA DAS PERGUNTAS DO PSIQUIATRA);
- Calado no que era essencial, inconsequentemente verboso no que era acessório, Sampaio foi durante 10 anos apagado, passivo e cúmplice.
- Sampaio maximizou o conhecido adágio camoniano: "Fraco Rei que faz fraca a forte gente";
- Se quiser encontrar na história algum émulo da figura sampaísta, a tarefa não será muito difícil: desde Carlos I de Inglaterra, a Luís XVI de França até ao imperador dos aztecas, Montezuma - saliente-se que todos eles eram coevamente considerados como pessoas de bom trato, com algumas boas intenções mas a quem faltaram condições objectivas e, sobretudo, subjectivas para levarem avante as suas intenções.
- Entre nós, é inafastável a analogia com o Rei D. João VI - no dizer de Joel Serrão "o Rei, que não havia sido fadado pela natureza nem com grandes recursos intelectuais nem com vontade firme e esclarecida, que poderia fazer ... além de procurar impossíveis equilíbrios, inviáveis mediações entre a rotina e a inovação? No meio da ... tempestade nacional ... tíbio, infeliz e bom, o Rei, aos baldões dos acontecimentos, encarnou um período calamitoso da história pátria";
A QUESTÃO GERACIONAL
- Nisto, é bom reconhecer, Sampaio representou mais do que ele próprio - personificou, impressivamente, um certo timbre agridoce da mediocridade nacional;
- Mais do que isso: Sampaio tornou-se num paradigma de uma certa geração de esquerda que largou os ideais da adolescência volitivamente retardada e se mascarou com as matizes caducas de um sistema que tinha jurado combater;
- É que, ao contrário de Guterres e de Sócrates, Sampaio é um verdadeiro homem de esquerda.
- Simboliza uma geração que entendia a contestação como um valor em si mesmo, que acreditava ser detentora do exclusivo de todas as verdades da vida;
- Mais do que uma geração no seu directo sentido cronológico, trata-se de um grupo cultural politicamente forjado nos idos dos anos sessenta ao som de músicas de intervenção e à boleia de leituras apressadas de utópicos, de irrealistas perigosos que sonhavam com a fabricação de um "Homem Novo" num "Mundo Novo" cheio de "amanhãs que cantam";
- Fazia parte de um grupo de homens e mulheres que não aceitava a realidade - muito pela recusa em a compreender - e cuja ambição mais comum era querer mudar o mundo desde os seus alicerces.
- Ou seja, uma geração que estava errada e que falhou em quase todos os seus intentos. Apesar de hoje estarem no poder em toda a parte, o mundo está cada vez mais igual a si próprio, principalmente nos seus piores aspectos.
- E a verdadeira angústia de Jorge Sampaio, no momento em que abandona 10 anos de poder é acabar por ser o Presidente inócuo de uma realidade tão intimamente semelhante àquela contra a qual sempre quis lutar.
- Em boa verdade, a acção de Sampaio, o seu estilo passivo e legalista, a sua tão auto-propalada "relação afectiva com os portugueses" faz lembrar muito de perto o magistério presidencial do Almirante Américo Tomás;
- (CASO DO ENCONTRO COM O DALAI-LAMA no Museu Nacional de Arte Antiga)
SAMPAIO E O MODO DE SER PORTUGUÊS
- José Gil, no seu "PORTUGAL HOJE - O Medo de Existir", fala no "país da não-inscrição", i.e. na nossa capacidade de ser e existir de modo arredado dos factos que aconteceram antes - nada se inscreve, ou seja não há consistência entre o que se passa (que tende a desvanecer-se inexoravelmente) e o adquirido com o qual não há consequência ou coerência;
- Sinceramente, entendo que a presidência de Jorge Sampaio se insere nesta tradição - JS é o presidente da não-inscrição, é o presidente dos factos políticos que não o são, dos avisos que são feitos e que instantaneamente se extinguem sem deixarem qualquer lastro, dos ultimatos ao Procurador-Geral que este publicamente desdenha, das crises que, em espiral, se sucedem a outras sem que as antigas tenham feito lição.
- A "inscrição", ainda citando José Gil, «implica acção, afirmação, decisão, com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência».
- Foi precisamente isto que JS não foi capaz de fazer em relação ao cargo de Presidente - a sua não-inscrição compulsiva implicou uma enorme perplexidade face ao cargo de PR
- Por outro lado, é inevitável constatar que nesta espantosa sucessão de encómios por parte dos escribas do sistema (que não me parece coincidir exactamente com a opinião que percebo nas pessoas comuns: Fórum TSF), há, entre outras coisas mais inconfessáveis, uma atitude muito nossa: quando alguém morre, nem que tenha sido o pior possível em vida, passa automaticamente a ser um companheiro saudoso e "porreiro";
- O mesmo quando alguém se reforma ou abandona um cargo que ocupou durante bastante tempo a nossa natural afectividade tudo faz para esquecer o que houve de mal e, pelo contrário, realçar aquilo que de bom aconteceu;
- Só que isso é perigoso para a Democracia.
DEMOCRACIA
- A ideia contemporânea de Participação vive da possibilidade dos cidadãos poderem influir efectivamente nas decisões que vão afectar as suas vidas - o que acarreta responsabilização dos dois lados;
- A recusa da "procuração temporariamente irrevogável" em que se transfere a total responsabilidade da governação para os órgãos eleitos, directa ou indirectamente, podendo estes fazer quase tudo aquilo que não for manifestamente ilegal - e, demasiadas vezes, o disparate não o é;
- Uma ideia de cidadania atenta, responsável e explicável, tem como reverso desejável uma governação transparente e accountable;
- A tradição governativa nacional (e, também, de liderança política) - a irresponsabilidade (não prestar contas das opções tomadas) como regra pacata e inquestionável da nossa governação;
- A falta de transparência como vector comportamental dos nossos poderes públicos;
- Só pode haver Democracia Participativa se os cidadãos pressentirem que os seus líderes políticos podem ser responsabilizados pelas suas opções.
- A não ser assim, esvai-se o interesse, esgota-se a participação (transformada num seco ritual formal) e perde-se o sentido moderno de cidadania.
- Seria bom para a saúde da nossa democracia que as pessoas tivessem consciência do que se passou nos últimos 10 anos, do sacrifício que se está a impor a mais do que uma geração e que isto tem culpados, gente de carne e osso, com rosto e com nome que pode e deve ser responsabilizada politicamente.
- · Em vez de envolverem o triste sucedido num manto nebuloso de nacional-porreirismo em que "no fundo, não vale a pena fazer nada", "exagerar" porque fulano "até é bom homem?";
SAMPAIO - QUESTÕES CONCRETAS
- Cumplicidade clara no descalabro guterrista.
- Duplicidade de critérios entre as suas inexistentes censuras nos tempos calamitosos de Pina Moura e os "recados" parciais e contraditórios a Manuela Ferreira Leite - "Há vida para além do défice".
- Dissolução da AR - o paradoxo de um Governo que parecia ser mau em tudo menos na elaboração do Orçamento (qual era o problema de vivermos mais 3 meses em duodécimos?);
- Intervenção na Bósnia (apoio aos bombardeamentos de Belgrado) sem Declaração de Guerra e sem seguir preceitos constitucionais.
- Complacência temerosa com a actuação com os desmandos roncantes do Presidente do Gov. Regional da Madeira;
- Inacção na questão europeia junto dos cidadãos - o pouco que tentou fazer foi inconsequente. Apareceu fora do tempo e em tom panfletário (e não pedagógico) a apelar a um dos lados da contenda a propósito da CE - mas não vi a presidência a patrocinar debates e o esclarecimento que era essencial (ao contrário da AR e das universidades), talvez a primeira prioridade da nossa política externa.
SAMPAIO - QUESTÕES GERAIS
- JS comportou-se como um Presidente do Conselho Fiscal do Formalismo Constitucional (mas se era isso que queria ser, é caro demais);
- Tudo piorou e Sampaio discursou inocuamente, constantemente e nada aconteceu.
- Foi o presidente dos apelos à "Serenidade" - que na versão sampaísta rima bastante com "bovinidade", uma constante solicitação para uma atitude contemplativa perante a realidade, quase um estado geral de letargia ruminante.
- Serenamente, durante estes 10 anos, o país afundou-se, tornou-se descrente, medroso, incerto e derradeiro - mas sempre com muita "Serenidade".
- Embalados no discurso soporífero da «Serenidade» o nosso colectivo esvaiu-se;
- JS foi um inconsequente «Moralista do Caos» como hoje dizia alguém no Fórum TSF.
- Vamos recordá-lo apenas para o desmentir;
- Vamos tentar não o esquecer para fazer diferente, ultrapassar este mau momento e enfrentar o futuro com uma atitude situada nos antípodas daquilo que JS faria.