21.3.06

A ILUSÃO DA INFELICIDADE - o "Factor Deus" e outros milenarismos

«Porque é que o homem moderno vê o futuro de forma tão negra? Este é sem dúvida um dos maiores paradoxos da actualidade» escreveu ontem, na sua crónica, no DN, João César das Neves.
Ao ler os primeiros parágrafos do artigo senti um arrepio de horror a percorrer-me a espinha - tinha feito uma apresentação numa conferência, alguns dias antes, que intitulei "A Ilusão da Infelicidade" e parecia-me vislumbrar uma desagradável analogia entre o que havia dito e alguns dos pressupostos do articulista mais piamente granítico da imprensa nacional. Mas logo percebi que apesar de alguma aparente similitude nalguns fundamentos, as conclusões a que havia chegado era exactamente as contrárias. Felizmente.
Na verdade, JCN vê parte do problema sem perceber que faz parte integrante dele: (tópicos de uma apresentação)
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Ciclicamente, tem-se falado na morte das religiões. Sobretudo, nos últimos 2 séculos.
É natural que assim tenha sido, dada a aparente antinomia entre o espírito científico prevalecente nesse período, com vestes mais ou menos positivistas, e a crença idólatra no sobrenatural.
Mas, mesmo no auge do movimento positivista, fizeram-se notar manifestações de fortíssimo sinal contrário, como aquelas que nas últimas décadas do séc. XIX redundaram nos movimentos "espiritistas", bastante populares nos países anglo-saxónicos.
O avanço do conhecimento fez nascer em muitos a convicção de que o sobrenatural, estribado ou não numa organização religiosa, estaria sob uma condenação a prazo - desse modo, pouco a pouco, a laicidade dos poderes públicos consagrada na maioria das Constituições europeias fez-se quase indiscutível nas mentes populares, as razões de fé deixaram de ter acolhimento bastante, mesmo nas áreas do conhecimento dito social ou humano. O desenvolvimento científico e tecnológico e a melhoria essencial das condições de vida numa grande parte do mundo, fizeram antever uma desnecessidade futura da religião e das suas congéneres visões do sobrenatural.
Era o apogeu da Modernidade, uma Era sustentada em bases de progresso, razão e conhecimento, com os seus elementos ponderados e equilibrados, e em que o oculto e o divino pareciam, apenas, conseguirem sobreviver em vagos interstícios custosamente ancorados na Tradição, no Mito e na Arte.
Paradoxalmente, após os meados do séc. XX, deram-se algumas das primeiras manifestações reactivas, nomeadamente na cultura popular - em 1955, J.R.R. Tolkien publica sua trilogia "O Senhor dos Anéis", construindo um magnífico universo paralelo feito de elementos mágicos e dando umas asas ao imaginário que este não havia conhecido desde o fim do romantismo literário.
Em 1960, Jacques Bergier e Louis Pauwels publicam "Le Matin des Magicians" e iniciam o movimento do realismo fantástico.
Pouco depois, Ursula Le Guin faz derivar a ficção norte-americana para o género que, mais tarde, se veio a designar Sword & Sorcery.
Cedo, porém, estas, entre tantas outras manifestações aparentemente avulsas de cultura popular, aliaram-se a uma vaga desarmoniosa e desconforme de angústias das mais variadas origens que irão despenhar-se num movimento genérico de contra-cultura nos idos da década de sessenta e setenta que foi permanecendo e ganhando novos matizes, renovando os seus discursos de contestação, reciclando causas e pairando como uma sombra expectante na vida das sociedades livres.
A progressiva falência dos modelos ideológicos de cariz marxista e o correspectivo êxito do paradigma das liberdades fundamentais e da lógica do mercado livre, integraram o acento tónico da realidade das últimas duas décadas do século XX - sempre, no entanto, declinada por aqueles que viam esboroar-se diante dos seus olhos os ideais de juventude, aquelas verdades insofismáveis à luz das quais se tinham feito gente.
Mas a queda do Muro de Berlim precipitou tudo:
- A prevalência de um modelo de sociedade contra o qual tantos e tantos se tinham formatado;
- A vitória de uma só potência mundial que há muito se tinha tornado no paradigma representativo de todos os males do mundo numa parte substancial do pensamento europeu e não só;
- A ideia de que o mundo, todo ele, se poderia vir a tornar num único mercado livre de freios estatais, de taxas aduaneiras ou de intenções reguladoras;
- Os receios causados pela brusca alteração das regras da política internacional que, piedosamente, julgava ultrapassada lógica das placas tectónicas (na expressão de Samuel Huntington) e das divergências civilizacionais;
- As naturais angústias presentes num momento de mudança de Era, de transição, em que o passado mitificado, seguro e feliz, tende a assumir tonalidades enternecedoras e saudosas, enquanto que, ao contrário, o presente parece incerto e ameaçador e o futuro é sempre pintado com as cores mais sombrias.

Tudo isso confluiu e transbordou num fim de século, numa tardo-modernidade deveras complicada e plena de paradoxos:
- Proliferação de seitas caracterizadas por uma incoerência generalizada, apenas unidas pelo leit-motiv do "contra".
- Regresso do sobrenatural e do místico, o Rumor dos Anjos, na expressão de Peter Berger, que volta a ser oficialmente assumido inclusivamente os seus traços mais anti-modernos.
- O recrudescimento de movimentos religiosos fundamentalistas nas várias Igrejas cristãs (é precisamente nestes dois últimos indícios que julgo poderem-se enquadrar as aflições de João César das Neves).
- A exacerbação de ilogicidades de timbre mágico, a cultura dos extraterrestres, a histeria dos OVNIS;
- A escatologia ambiental, as múltiplas organizações dos amigos das baleias e das focas-bébé, visão do ambiente como uma entidade quase espiritualizada, intocável e imudável;
- A exaltação de aspectos mediúnicos e astrológicos, a repristinação de teses milenaristas, a visão do homem como um agressor compulsivo, um vírus à solta pelo mundo.
Gerou-se um clima de contestação utópica e sistemática com três aspectos principais:
1. A desconfiança genérica pelos adquiridos do final da modernidade;
2. O ódio à Ciência;
3. O enraizamento das teses anti-globalização.
Este quadro gerou o paradoxo mais palpável da nossa contemporaneidade: a ilusão de infelicidade.
Está espalhada por todo o lado - cultura popular e sectores alargados da intelectualidade, pensamento dominado pelos fundamentalistas das várias crenças e religiões - a falácia que assegura que a humanidade nunca viveu tempos tão difíceis. Por mais que a realidade desminta este absurdo, ainda que seja patente a constatação de que o homem vive actualmente com uma qualidade que não tem comparação (em nenhuma dimensão existencial) com qualquer outra época desde que a humanidade existe.
Curiosamente, uniram-se nestas conclusões algumas inquietações da mais variada origem: desde os conservadores mais retintos que contestam qualquer sombra de mudança, que julgam o mundo fatalmente desabado na decadência moral mais vil e propõem, alegremente, o regresso célere ao que afiançam ser a "boa e velha ordem"; até aos que continuam enfermos com o delírio da "sociedade sem classes" e, irresistivelmente, ainda se emocionam com os acordes da "Internacional".
No fundo, ambas as perspectivas são tonalidades de uma mesma melodia que advoga o regresso a um passado sempre mitificado, irrealmente perfeito [corrigido] e logicamente impossível. Mas seria um grave erro desconsiderar a influência que ambos os movimentos desfrutam no pensamento contemporâneo. Por irracional que possa parecer.