22.3.06

para que serve o cds?

Há uma história sobre o CDS que poucos conhecem e que talvez nos ajude a compreender a vida passada e recente do partido e aquilo que ele hoje representa: é o episódio da sua fundação, que Diogo Freitas do Amaral relata com particular vivacidade no primeiro volume das suas memórias, que se chama «O Antigo Regime e a Revolução». Os factos resumem-se no que se segue.
No dia 4 de Maio de 1974, poucos dias após a revolução, Freitas do Amaral e Alberto Xavier receberam um telefonema do Palácio de Belém, para os convocar para uma reunião cuja agenda desconheciam. A ignorância sobre o teor da reunião era tal, que Freitas recorda que «o Alberto Xavier receava que, tendo sido Secretário de Estado no Governo deposto pela Revolução, o quisessem prender».###
Naturalmente receoso, Freitas do Amaral telefonou a Augusto Athayde, que ainda era parente de Costa Gomes, para indagar das intenções a seu respeito e a respeito do seu colega e amigo. Acalmados os piores receios pela conhecida sensatez de Atayde, conta Freitas que «lá nos dirigimos para o Palácio de Belém, um pouco antes das 22 horas. A nossa curiosidade não podia ser maior».
Uma vez chegados, deram imediata entrada numa reunião com o directório político-militar do MFA e os representantes dos partidos políticos entretanto já criados ou legalizados pela revolução. Nomeadamente Álvaro Cunhal pelo PCP, Magalhães Mota e Pinto Balsemão pelo PPD, Sottomayor Cardia pelo PS e Pereira de Moura pelo MDP/CDE.
A reunião foi aberta por alguém do MFA, cuja identidade Freitas não consegue precisar, mas que se dirigiu aos presentes como «os representantes dos partidos políticos ou em formação». Espantados, Freitas e Xavier retorquiram que devia haver algum equívoco e o primeiro foi especialmente incisivo ao dizer aos presentes que «tenho a declarar-vos muito francamente que eu não sou representante de nenhum partido político existente ou em formação». Melo Antunes retorquiu-lhe: «Não senhor, não há erro nenhum da nossa parte. Nós convocámo-los muito propositadamente. É que os senhores, durante os últimos três anos, apresentaram e defenderam um pensamento económico liberal, ou neo-liberal, com visíveis preocupações de justiça social, na página económica do "Diário de Notícias", e nós pensamos que os senhores representam melhor do que ninguém um Partido Liberal como os que existem noutros países europeus e que fará muita falta, se não existir, no leque partidário português».
A reunião findou com a análise da situação ultramarina e com a posição do PCP expressa por Álvaro Cunhal: «para nós, comunistas, todas essas soluções e métodos (referindo-se às propostas dos spinolistas e do PS no sentido de uma descolonização negociada e gradual) são profundamente irrealistas. (...) O que a Carta das Nações Unidas impõe a Portugal é a descolonização; e esta - nomeadamente em Angola, Moçambique e na Guiné - só pode ser feita através da negociação com os movimentos de libertação que têm lutado contra o colonialismo português (e mencionou, explicitamente, o MPLA, a FRELIMO e o PAIGC), que deverá ser seguido, no mais curto prazo possível, da concessão por Portugal da independência plena e sem condições aos territórios coloniais submetidos ao imperialismo português. Esta é a tarefa prioritária do regime democrático novo, e deve ser levada a cabo sem perda de tempo». Freitas, embora em silêncio, concordou. Como ele anotou nas suas memórias, «fiquei convencido de que a estratégia de Cunhal e do PCP iria triunfar sobre qualquer outra, pelo menos neste ponto, e que o destino do Ultramar português era um caso arrumado».

Este episódio, aqui longamente relatado, interessa porque explica que, no fim de contas, o CDS nasceu de uma acumulação de equívocos e de erros, desde logo, na sua fundação: receosos da prisão, os seus fundadores e primeiros dirigentes dirigem-se a uma reunião onde, afinal, são arvorados a líderes partidários e a personalidades do novo regime pelo directório militar da revolução. Chefiando um partido político eleitoralmente de direita, Freitas do Amaral nunca se libertou dos complexos de esquerda provenientes da sua estreita colaboração com o antigo regime e particularmente com Marcello Caetano. Para Freitas, desde o princípio que o CDS não estava, como dizia, «nem à esquerda nem à direita, mas rigorosamente ao centro». Mais tarde, principalmente após a morte de Adelino Amaro da Costa, estes complexos de esquerda, ou melhor, em não ser de direita, agravaram-se-lhe e estenderam-se a quase todo o pessoal político que ele "criou" nos primórdios do CDS e que se foi mantendo no activo: Luís Beiroco, Rui Pena, Jorge Goes, entre outros, aderiram ao PS social-cristão de António Guterres, e o próprio Freitas é ministro do actual governo, com o qual Basílio Horta também colabora.
Ideologicamente, o CDS nunca foi nem carne nem peixe: nem de esquerda nem de direita, nem liberal nem social-democrata, nem coisa nenhuma com a qual o país tivesse tido um ganho claro.
Na sua relação com o poder, o CDS tem tido uma vida precária e nem sempre muito clara: viabilizou, em 1978, o 2º governo constitucional liderado por Mário Soares e pelo PS, em troca de alguns ministérios e de visibilidade política, quando Francisco Sá Carneiro militava na oposição ao socialismo. De 1980 a 1983, esteve no governo, primeiro liderado por Sá Carneiro e depois por Pinto Balsemão, donde saiu para não mais voltar até 2002, para nele se manter durante três anos, até ter saído nas condições que se conhecem. No poder autárquico, o CDS tem vindo, quase desde a sua fundação, a diminuir de expressão, até à actual quase inexistência autónoma do PSD. Isto representa, ao fim de trinta e dois anos que leva a III República, que o CDS esteve menos de sete anos no governo do país e que não tem praticamente existência nos governos das comunidades locais.
Por último, reconheça-se que o CDS permitiu a revelação de alguns talentos políticos e mediáticos e acolheu alguns outros que já tinham vida própria no seu seio: Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, Lucas Pires, Manuel Monteiro, Paulo Portas, António Lobo Xavier e Adriano Moreira, como figuras de primeira linha, e uma ou duas dúzias de figuras de segundo plano. É pouco em trinta e dois anos? É.
Em contrapartida, o CDS, sobretudo nos últimos anos, não tem sido parco em espectáculos lastimáveis e que denigrem a política, os políticos, a direita, e representa mal (ou não representa por transferência de voto para o PSD ou para a abstenção) um espaço partidário, sociologicamente identificado com uma classe média que não vive à conta do Estado e que não se revê nele. Desde o célebre episódio da caneta (que preencheu debates inesgotáveis sobre quem teria feito a partida ao Dr. Portas), até aos mais recentes acontecimentos do envio do retrato do «fundador» para o Largo do Rato e a exigência de um «partido sexy», o Largo do Caldas tem-nos brindado com alguns dos mais hilariantes momentos da política portuguesa contemporânea. Infelizmente, à sua conta, o PSD e o PS têm obtido confortáveis maiorias absolutas e Portugal não dispõe de um partido que verdadeiramente represente a classe média que quer distancia do Estado.

Neste estado de coisas, em que os partido e o regime estão como estão, o CDS lá vai sobrevivendo. Se a bitola de exigência subir um pouco mais, e o governo de Sócrates parece que assim determinará, o CDS, este e aquele que temos conhecido, ou se refunda ou deixará de ter razão de existir. As instituições - todas as instituições - mais tarde ou mais cedo extinguem-se e o CDS não será certamente excepção a esta regra. Os que por lá ainda vão tendo algumas responsabilidades e os seus poucos militantes activos talvez devam perguntar-se se ainda se justifica manter um partido que continua sem uma ideologia clara, sem um programa que o diferencie do «grande centrão», sem nada de especificamente distintivo em relação ao PSD, a não ser uma imensa capacidade de arranjar pequenas histórias que não interessam a ninguém. E devem estar cientes que, desta vez, é pouco crível que o seu partido consiga sobreviver a outros vinte anos de jejum.