27.12.06

As ocorrências e os crimes*

«O restaurante Galeto, um dos mais emblemáticos de Lisboa, foi encerrado segunda-feira por ordem da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, devido a anomalias encontradas na sua cozinha. (...) A cozinha do estabelecimento foi selada por razões técnico-funcionais e por falta de higiene. A ASAE diz que esta foi apenas mais uma acção de rotina, mas a SIC sabe que surgiu na sequência de várias denúncias.» (SIC)

«Piratas informáticos e proprietários de restaurantes foram constituídos arguidos na sequência de uma investigação da Polícia Judiciária que detectou um sistema montado em vários pontos do país com a única finalidade de fugir aos impostos. Feitas as contas, o programa legal mas pirateado permitia aos restaurantes uma redução dos impostos pagos da ordem dos 25 [por cento]. Os lucros cresciam na mesma razão. No total, 20 pessoas foram constituídas arguidas na sequência das investigações, que culminaram anteontem e ontem com a realização de 13 buscas a empresas e residências assim como fiscalizações em 25 restaurantes.» (Jornal de Notícias)

Com uma cadência que se torna quase rotineira habituamo-nos a ver diariamente elementos das forças policiais e da ASAE entrando em restaurantes, congressos de comida regional, feiras e mercados indagando por facturas, recibos, guias de remessa, investigando a qualidade e origem dos alimentos ou qual a formação dos empregados.###
Ao ler estas notícias não deixo de me espantar. Como podem as autoridades envolvidas ter a certeza de que a porcaria encontrada na cozinha dos restaurantes que encerra não foi lá colocada por alguém de má fé? Aliás, como entraram os inspectores na cozinha do Galeto, sendo essa cozinha propriedade privada? E a polícia constituiu arguidos sem ter a necessidade de presenciar os actos em flagrante delito? E como pode a PJ afirmar que o programa informático está viciado? E que a finalidade desse vício é a fuga aos impostos? E entraram em casa das pessoas? A sério? E elas deixaram?...
Estou absolutamente pasmada. Não sabia que as autoridades podiam agir com esta determinação, rapidez, ainda por cima por simples denúncia! Aliás, penso até que este Portugal referido nas notícias do JN e da SIC não deve ser o mesmo que o meu. No meu Portugal, as vítimas podem estar esmurradas, assaltadas, verem a sua casa destruída por actos de vandalismo - mas as autoridades não podem fazer nada, porque não assistiram aos factos. E não sabem se as vítimas e as testemunhas estão a mentir.
Numa espécie de crescendo tenho assistido, próximo do local onde habito, ao evoluir dum caso de violência doméstica. Um homem adulto, com problemas de dependências várias, agride regularmente a mãe e as irmãs com quem vive. Regularmente também, ameaça-as com facas e destrói o recheio da casa. Estas explosões de violência são antecedidas de largas discussões. Digamos que uma espécie de nervosismo se apodera da rua nesses dias. Começam a ouvir-se portas a abrir e a fechar. Ninguém estaciona por aquelas bandas. Até que finalmente a 'coisa' começa. Ouvem-se gritos de socorro e ruídos difíceis de interpretar na escala da normalidade. Nas vizinhanças há quem opte por se fechar ainda mais dentro de casa. Outros vêm para a rua. E mais ou menos todos começam a telefonar ao mesmo tempo para a PSP. Ao primeiro ou segundo telefonema ainda há quem atenda com rapidez na dita esquadra. Depois deixam tocar, tocar... até que, volvida muita música de xilofone, um agente comunica que já tomaram «conta da ocorrência». Entre a esquadra tomar conta da ocorrência e o carro patrulha chegar ao local da ocorrência podem passar 60 longos minutos, cada um deles com 60 longos segundos...
Foi assim da última vez. Após uma espera interminável chegaram dois agentes. Que sim, sabiam que as senhoras estavam cheias de razão, que estavam fartos de receber queixas sobre aquele senhor mas que infelizmente não podiam fazer nada a não ser levá-las, a elas, claro, para a esquadra e arranjar um local para pernoitarem. Entrar na casa onde o agressor estava nem pensar. (Sublinhe-se que a proprietária da casa tinha sido posta fora pelo dito agressor). Face à desolação do mobiliário partido que se acumulava na porta também disseram os agentes não ter dúvidas de que o autor daquele desvario devia ser aquele senhor que era indicado como agressor - mas tinham de o surpreender em flagrante. Donde se presume que os testemunhos, quer das vítimas quer de todas as pessoas que assistiram àquele desmando, não servem para nada.
Perante tudo isto tomei uma decisão. Não, ainda não cheguei à fase «uma palavrinha dita a uns russos que andam opor aí resolvia isto num instante» sussurrada por alguns transeuntes, mas digamos que a minha opção também não é moral e civicamente irrepreensível. Mas é a minha opção e não penso arrepiar caminho. De hoje em diante, se for vítima de algum tipo de agressão ou furto, não me queixarei em esquadra alguma. Dirijo-me à ASAE ou à Direcção Geral das Contribuições e Impostos. Apresento uma queixa ou faço até uma denúncia anónima onde acuso o agressor de me vender, sem factura, uma dúzia de rissóis confeccionados numa cozinha sem as devidas condições, por pessoal sem formação adequada. Depois é só esperar para ver os homens da ASAE em acção. Com alguma sorte consigo também que a Direcção Geral das Contribuições e Impostos estime que o meu agressor tem uma dívida ao fisco superior a 25 mil euros e assim colocam-lhe o nome numa lista negra disponível na internet. Eficaz não é?
Os crimes que afectam a vida dos cidadãos como a violência doméstica ou a delinquência urbana transformaram-se em ocorrências. Às vítimas, não só se exige que se comportem com o desprendimento de quem foi convidado a participar numa experiência sociológica como ainda se parte do pressuposto da sua absoluta má fé: os móveis estavam partidos, mas sabe-se lá se não teriam sido as mulheres que se diziam agredidas a parti-los! Pelo contrário, ninguém teve dúvidas de que os programas informáticos estavam viciados. Contudo, se nesta matéria se aplicassem os mesmos critérios, os agentes ainda nem tinham entrado nos restaurantes, quanto mais na casa dos seus proprietários.
Indiferente e quase criminosamente negligente quando se trata de assegurar aos cidadãos que estes não serão inibidos dos seus direitos - viver sem ser agredido e sem ter medo de ir à rua é um direito - o Estado português toma-se dum extraordinário zelo, a que acrescenta fortes traços de autoritarismo, quando estima que alguém não paga os seus impostos ou exerce uma actividade sem estar devidamente licenciado - e o licenciamento nem sempre quer dizer mais qualidade ou mais segurança para os cidadãos, frequentemente quer só dizer isso mesmo: que se pagou a licença.
Os cidadãos estão reduzidos e domesticados na sua condição de contribuintes. E é nessa vertente que o Estado os reprime, os procura e se interessa por eles. Quanto ao resto, «aos costumes disse nada».

*PÚBLICO 23 de Dezembro