A essência do totalitarismo democrático, isto é, da convicção generalizada nas sociedades ocidentais contemporâneas de que o poder político pode invadir todos os cantos da vida em sociedade, fundamenta-se numa convicção muito antiga da ideia de soberania.
Se fizermos a genealogia deste conceito, desde os clássicos gregos e romanos, passando pelo Renascimento e por Bodin que supostamente o «criou», aos modernos contratualistas como Hobbes e Rousseau, aos autores do século passado como Carl Schmitt, Hans Kelsen, George Jellinek e a generalidade dos defensores da missão social do Estado, neles encontraremos uma ideia de que a soberania é um atributo do Estado, é uma faculdade não partilhável com terceiros, isto é, é indivisível, e se trata de um poder supremo que não comporta concorrência. Sempre, como não poderia deixar de ser, ao serviço da comunidade. Mesmo quando, no caso confesso de Hobbes, (se for preciso...) a tiraniza.###
A diferença entre a soberania dos regimes ditatoriais e a que é praticada nos regimes democráticos reside, sobretudo, na sua legitimidade e nalguns limites, outrora muito mais amplos e rigorosos, que vai conhecendo nos segundos e que praticamente desconhece nos primeiros. De facto, o poder soberano é legitimado, nos regimes democráticos, pelo sufrágio universal e aceita limites, como os direitos à vida, à liberdade de expressão, à participação política, entre outros de menor expressão. Todavia, estes últimos direitos têm sido bastante condicionados pelas oligarquias que se vão cristalizando na maior parte das democracias, mantendo-os, muitas vezes, mais como formalidades constitucionais do que efectivos direitos de cidadania política.
Por sua vez, a soberania manifesta-se, hoje como no passado, através da lei. A ideia de que a lei é soberana e, porque expressão do povo, inquestionável e de alcance praticamente ilimitado, tem sido o principal factor de perversão da própria democracia. Na verdade, também aqui, esta ideia é muito antiga: na Roma clássica a lei era a expressão da vontade do imperador; com o Renascimento passou a ser, por influência do direito romano renascido, a vontade do príncipe e do rei; a partir da Revolução Francesa foi a manifestação da vontade geral do povo e por aqui se tem mais ou menos mantido. A ideia liberal oitocentista de que a lei serve para se limitar a si mesma e para conter os ímpetos do poder está, hoje, completamente pervertida por aquela contra a qual se rebelou.
Em qualquer dos casos, pertença a um, a alguns ou a vários, qualquer que seja a legitimidade invocada, esta ideia de lei e de soberania nega, de facto, a liberdade. Para o liberalismo, mais do que os fundamentos da lei e da soberania, interessa a sua qualidade, isto é, as razões pelas quais é exercida e os efectivos limites do seu exercício. Para o liberalismo é indiferente que a lei que atropela a liberdade e os direitos individuais seja sufragada por muitos, poucos ou nenhum. O que verdadeiramente interessa é o seu conteúdo. Em razão do que a democracia liberal, para o ser, carece actualmente de um novo contrato social que a reconduza à sua razão de ser e não àquela de que nos querem convencer.
Se fizermos a genealogia deste conceito, desde os clássicos gregos e romanos, passando pelo Renascimento e por Bodin que supostamente o «criou», aos modernos contratualistas como Hobbes e Rousseau, aos autores do século passado como Carl Schmitt, Hans Kelsen, George Jellinek e a generalidade dos defensores da missão social do Estado, neles encontraremos uma ideia de que a soberania é um atributo do Estado, é uma faculdade não partilhável com terceiros, isto é, é indivisível, e se trata de um poder supremo que não comporta concorrência. Sempre, como não poderia deixar de ser, ao serviço da comunidade. Mesmo quando, no caso confesso de Hobbes, (se for preciso...) a tiraniza.###
A diferença entre a soberania dos regimes ditatoriais e a que é praticada nos regimes democráticos reside, sobretudo, na sua legitimidade e nalguns limites, outrora muito mais amplos e rigorosos, que vai conhecendo nos segundos e que praticamente desconhece nos primeiros. De facto, o poder soberano é legitimado, nos regimes democráticos, pelo sufrágio universal e aceita limites, como os direitos à vida, à liberdade de expressão, à participação política, entre outros de menor expressão. Todavia, estes últimos direitos têm sido bastante condicionados pelas oligarquias que se vão cristalizando na maior parte das democracias, mantendo-os, muitas vezes, mais como formalidades constitucionais do que efectivos direitos de cidadania política.
Por sua vez, a soberania manifesta-se, hoje como no passado, através da lei. A ideia de que a lei é soberana e, porque expressão do povo, inquestionável e de alcance praticamente ilimitado, tem sido o principal factor de perversão da própria democracia. Na verdade, também aqui, esta ideia é muito antiga: na Roma clássica a lei era a expressão da vontade do imperador; com o Renascimento passou a ser, por influência do direito romano renascido, a vontade do príncipe e do rei; a partir da Revolução Francesa foi a manifestação da vontade geral do povo e por aqui se tem mais ou menos mantido. A ideia liberal oitocentista de que a lei serve para se limitar a si mesma e para conter os ímpetos do poder está, hoje, completamente pervertida por aquela contra a qual se rebelou.
Em qualquer dos casos, pertença a um, a alguns ou a vários, qualquer que seja a legitimidade invocada, esta ideia de lei e de soberania nega, de facto, a liberdade. Para o liberalismo, mais do que os fundamentos da lei e da soberania, interessa a sua qualidade, isto é, as razões pelas quais é exercida e os efectivos limites do seu exercício. Para o liberalismo é indiferente que a lei que atropela a liberdade e os direitos individuais seja sufragada por muitos, poucos ou nenhum. O que verdadeiramente interessa é o seu conteúdo. Em razão do que a democracia liberal, para o ser, carece actualmente de um novo contrato social que a reconduza à sua razão de ser e não àquela de que nos querem convencer.