15.9.04

O futuro da Liberdade

No DN: Os votos contra a liberdade (por LEONÍDIO PAULO FERREIRA):

A tese defendida por Fareed Zakaria pode ser sintetizada numa frase: a democracia está a ganhar terreno, a liberdade não. E seguem-se mais de 250 páginas a sustentar brilhantemente a ideia, o que explica por que este O Futuro da Liberdade: A Democracia Iliberal nos Estados Unidos e no Mundo está condenado a tornar-se bestseller internacional. Trata-se de tese controversa, mas que não pode ser lida como ataque à democracia. É, sobretudo, um alerta.

O livro começa por uma constatação: no mundo de hoje a democracia é o mais popular dos regimes, tendência que se acentuou na década de 90, quando a desagregação do bloco comunista permitiu a democratização da Europa de Leste. Zakaria faz, aliás, uma contabilidade curiosa: «Em 1900 nem um único país se ajustava ao que hoje designamos por democracia: um governo constituído através de eleições, em que participam todos os cidadãos adultos com direito a votar. Hoje, 119 países fazem-no, correspondendo a 62% de todos os países do mundo».

Mas ao longo do livro o autor encarrega-se de desmistificar essa «ascensão da democracia», notando que em muitas partes do mundo a democratização não caminha associada ao «liberalismo constitucional», que Zakaria define, em traços largos, como o primado da lei, a liberdade de expressão e religiosa e os direitos das minorias. E nota que não é por acaso que as mais liberais das novas democracias são exactamente as que surgiram no Leste europeu. Estas partilham da experiência histórica que marcou a Europa e de forma indirecta algumas suas ex-colónias.

Foi na Europa, argumenta Zakaria, que a democracia liberal ganhou raízes e isso graças a uma complexa rede de circunstâncias. Uma delas é o peso da Igreja Católica, que Zakaria assinala ter sido sempre uma espécie de contra-poder aos monarcas. Assim, apesar das suas características muitas vezes reaccionárias, a Igreja acabou por funcionar como uma espécie de freio ao poder de outra forma absoluto dos governantes. Outros freios e contrapesos foram surgindo na história europeia, como a nobreza e depois a burguesia. A própria geografia ajudou o processo, pois fragmentou o espaço político e impediu os grandes impérios.

Este processo europeu é único, mas Zakaria salienta que outros países têm sabido construir as suas democracias liberais. Um deles é a Índia, onde a herança legislativa britânica, a vontade de Nehru e a necessidade de manter unidas et- nias e religiões favoreceram a consolidação democrática. Mas a Índia serve também de exemplo negativo, para explicar que a democracia pode ser iliberal: Zakaria recorda o caso do Gujarate, província onde o governo nacionalista hindu conquistou o apoio das massas nas eleições graças a uma prévia perseguição da minoria muçulmana. No fundo, alerta o autor, as massas, com o seu simples acto de votar, podem conduzir a situações iliberais. E avança com exemplos: Vladimir Putin reprimiu a liberdade dos media russos e reforçou a sua votação presidencial, Hugo Chávez monopolizou o Poder na Venezuela e foi plebiscitado.

Na sua análise, Zakaria não poupa os próprios EUA, onde o Congresso, graças a uma crescente abertura, surge cada vez mais manietado por lobbies, ao mesmo tempo que um excesso de referendos enfraquece o sistema. Ou seja, transparência e voto popular contrariando o liberalismo. Mas mais que o mundo desenvolvido, o autor escreve a pensar no Terceiro Mundo, alertando para os riscos de demasiada ênfase na democracia e no voto. E prevê que, por exemplo, no mundo árabe, onde os regimes repressivos são comuns, a democratização pura traria ao poder os fundamentalistas islâmicas. Por isso, a importância de outra ideia-chave do autor: a democracia liberal exige requisitos mínimos, a começar por uma sociedade civil esclarecida. E isso passa por uma componente económica: Zakaria calcula que a democracia não acontecerá (salvo excepções) em países abaixo da fasquia do rendimento per capita de 5000 dólares. Limiar de que se aproximam países como Marrocos e Tunísia.

Sobre o Iraque, Zakaria deixa uma sugestão à Administração Bush: não apostar tudo em sucessivas eleições, garantir que os vencidos partilharão «os despojos» do Poder e contribuir para a emergência de uma sociedade civil forte. Os recursos do país e a memória dos tempos de Saddam poderão também ajudar a democracia liberal.


Fala mal dos Estados Unidos e tudo. Que mais se pode pedir?