18.9.04

O REFORMADO AMARAL





VERSÃO A:

Tinha sido uma vida de dificuldades e privações.
Começara a trabalhar novo, muito novo, a acartar tijolo em obras clandestinas, para patrões ingratos que lhe pagavam mal e porcamente, sem contrato nem descontos.
Quando perfizera a maioridade, inscreveu-se nas Finanças e lá foi descontando dos biscates que conseguia arranjar. Trabalhou sol-a-sol, sem horários nem dias de descanso, e, quando arranjava uns expedientes, lá os executava depois de sair do emprego, a horas impróprias, com a família em casa à espera que ele chegasse para os abraçar.
Durante anos assim trabalhou e, quando se preparava para a reforma, disseram-lhe que o tempo de trabalho que tinha - e tanto ele tinha sido - era insuficiente. Parece que, agora, só aos sessenta e cinco anos de idade poderia retirar-se para casa e, finalmente, receber um pouco do que tinha dado.
Esse dia tinha, entretanto, chegado!
Por isso, prontificou-se a pedir aquilo que legitimamente julgara ser seu. Mas não foi fácil. Dias, semanas, meses a fio em repartições públicas, em bichas intermináveis, a aguardar que lhe dessem papéis para, segundo diziam, o processo ficar completo. Aos sessenta e cinco anos de idade já não lhe era fácil aguentar uma manhã inteira numa bicha à espera de ser atendido com displicência e desdém. Mas, com paciência e preserverança, lá conseguiu reunir a papelada que entregou religiosamente a quem de direito.
Esperou alguns meses por uma carta redentora. Todos os dias aguardava pelo carteiro que não lhe trazia o que ele, quase em desespero, esperava receber.
Um dia, muitos dias passados, o reformado Amaral, recebeu a carta e um magro cheque. Feitas as contas, já com sessenta e seis anos de idade, não seria fácil viver com aquilo. Teria de continuar a fazer alguns biscates. Mas, paciência. A vida é mesmo assim.


VERSÃO B

Tinha sido uma vida de dificuldades e privações.
Começara a trabalhar novo, muito novo, num lugar modesto de uma empresa de segunda, para patrões ingratos que não lhe pagavam tão bem como ele merecia receber.
Quando perfizera a maioridade, inscreveu-se na juventude de um partido político e lá foi fazendo uns biscates aos chefes da secção. Trabalhou sol-a-sol, sem horários nem dias de descanso, para engrandecer o partido e, quando arranjava um tempo de folga, dedicava-o à empresa pública em que fora colocado. Fora director-geral, ministro, gestor público e membro de inúmeros conselhos de administração sem funções executivas.
Durante anos assim trabalhou e, quando se preparava para novamente ser ministro, disseram-lhe que tinha de voltar a trabalhar! Com aquela idade, senhores!
Mas foi sol de pouca dura. Ao fim de dezanove meses pode retirar-se para casa e, finalmente, receber um pouco do tanto que tinha dado. O dia tinha chegado!
Por isso, prontificou-se a pedir aquilo que legitimamente julgara ser seu. Mas não foi fácil encontrar o seu chefe de gabinete para o mandar tratar do assunto no outro lado da rua. Com paciência e perserverança, lá conseguiu encontrá-lo e obrigá-lo a cumprir o seu dever: reunir-lhe a papelada e entregá-la a quem de direito.
Esperou algumas horas por uma carta redentora. Ao fim de um longo dia, muitas horas passadas, o reformado Amaral, recebeu a carta e um cheque. Feitas as contas, já com uma avançada idade, não seria fácil viver com aquilo. Teria de continuar a fazer alguns biscates no partido. Mas, paciência. A vida é mesmo assim.