17.9.04

O reformado, o representante e a transparência



Ontem foi dia de indignação generalizada por causa da reforma milionária do deposto Presidente da CGD. Estas alturas são muito adequadas para se dar largas à secular inveja lusitana, unindo fraternalmente todos num grande consenso nacional de repúdio e indignação moralista. Pouco interessa aferir da legalidade da dita reforma, saber quanto o homem descontou ao longo da vida (não terá sido decerto com base no salário mínimo!...), a indemnização que não recebeu, interessa é relacionar o valor apenas com os 18 meses de presidência da CGD. É uma afronta aos trabalhadores, é um insulto aos pobrezinhos, é um escândalo, ponto final! Quem trabalha na Caixa, deve ter espírito de serviço público - pregava ontem Cravinho na SIC. Mais tarde, em entrevista à RTP, o representante dos "accionistas" Bagão Félix, chocava-se com um valor que considerava obsceno, afiançando a sua ignorância quanto às condições vigentes na Caixa...

Sendo todos nós accionistas da Caixa, é lícito que tenhamos uma palavra a dizer sobre este tema. Só que somos accionistas compulsivos sem direito de voto e não tivemos qualquer oportunidade para eleger a administração e a Comissão de Vencimentos da empresa. O nosso "representante" - que também não escolhemos - ignora pelos vistos os critérios de remuneração e de reforma, mas indigna-se com eles, mostrando assim uma beatífica solidariedade com os restantes accionistas. Estes, que jamais estiveram presentes numa Assembleia Geral nem tiveram acesso a informações mais detalhadas sobre as contas da empresa, o negócio e suas condicionantes, tendem a assumir posições numa perspectiva essencialmente moralista, quase sempre desenquadradas do contexto em que a actividade se desenvolve.

Todo este clamor e a censura moral com ele consonante que, por arrasto, o nosso "representante" exprime na televisão, tem como efeito prático a assumpção implícita do miserabilismo igualitário nas remunerações dos quadros qualificados das empresas públicas. No limite, estes tenderão a disponibilizar o seu "espírito de serviço público" às empresas privadas concorrentes. Ou então camufla-se a sua remuneração total, repartindo-a por vários salários em empresas satélites, algumas constituídas só para esse efeito. O défice de transparência não pode senão aumentar.

Nada disto seria problema se a CGD fosse uma instituição privada. Mas porque terá de ser pública?