21.9.04

Os "malefícios" fiscais

Não posso estar mais em desacordo com esta posta do CAA. Meu Caro, tu trazes-me angustiadíssimo com esses preocupantes desvios intervencionistas e estás, mais uma vez, a afastar-te perigosamente de outro sacrossanto princípio da ortodoxia liberal, qual seja o do laissez-faire na esfera económica. E quando, por via de um pretenso pragmatismo ou de objectivos supostamente muito nobres como o da "justiça social" (o que é isso???) criamos excepções e nos afastamos deles (dos princípios, que não dos dogmas), o resultado final é tão só mais injustiça, desperdício e distorsões na economia.

Mais seriamente, analisemos então os tão falados "benefícios" fiscais e o seu anunciado fim. Diga-se, antes de mais, que eu serei uma das vítimas do Bagão, pois venho nos últimos anos fazendo uma criteriosa gestão fiscal, aproveitando ao cêntimo, não sei se racionalmente, todas as deduções previstas na lei.

Os PPRs (Planos Poupança-Reforma), os PPAs (Planos Poupança-Acções) e as CPHs (Contas Poupança-Habitação) de que muito agora se fala, constituem alguns dos instrumentos de poupança que integram o Estatuto de Benefícios Fiscais (EBF), instituído através do Decreto-Lei nº 215/89 de 1 de Julho, pela mão do para muitos saudoso, mas voluntarista, intervencionista e keynesiano Miguel Cadilhe. Dos "nobres" objectivos visados com tal medida, constavam o fomento da poupança e do investimento cujas virtudes, obviamente, ninguém contesta. Mas admitindo mesmo que se justificassem incentivos para melhor prossecução daqueles objectivos - confesso que cada vez me custa mais a aceitar essa enorme restrição a uma sociedade livre que é a definição de objectivos por parte do Estado - qualquer benefício fiscal deve ser temporalmente limitado. Apesar de no preâmbulo do dito DL se reconhecer o "carácter obrigatoriamente excepcional dos benefícios fiscais", Cadilhe cometeu um erro de base ao não estipular à partida uma data-fim para os mesmos. O resultado disto foi que eles rapidamente vieram engrossar o já enorme rol dos intocáveis "direitos adquiridos" e assistimos recorrentemente à caricata lamúria dos ministros das finanças queixando-se da perda de receita por via do uso indiscriminado dos benefícios fiscais ("vocês têm água, mas não bebam, que isso mata a sede!!!") para cederem posteriormente aos eternos grupos de pressão e limitando-se apenas a alterações anuais de cosmética no EBF. O somatório destas todas, mais não fizeram do que, à boa maneira portuguesa, aumentar a complexidade do EBF, cada vez mais intragável com os seus quase 70 gordos artigos, face à magra vintena inicial. Entretanto, o contribuinte aforrador vai vivendo naquela doce ilusão de estar a fazer a gestão mais adequada das suas poupanças, alimentada aquela pelo chequezito que vai chegando com a devolução do imposto, anestésico suficiente para se esquecer da mísera rendibilidade que os seus PPRs e PPAs vêm apresentando. E isto acontece porque a isenção fiscal que os rendimentos dos activos daqueles também beneficiam, não se reflecte num maior retorno para o aforrador, mas em comissões mais gordas para os Bancos e Seguradoras que os gerem. Estas Instituições, por sua vez, vivem também numa doce ilusão de aumentarem ad eternum os activos sob gestão e correspondentes lucros à conta da colocação de produtos cuja venda é facilitada pelo apelativo fiscal e não pelo seu valor intrínseco. Chegariam porventura a uma diferente conclusão no dia em que se lembrassem de quantificar toda a carga administrativa inerente a tais produtos, que vai desde o controlo da duração do investimento, da idade dos Clientes, do envio periódico de declarações fiscais a estes, de informações anuais detalhadas à DGCI e aos gigantescos e recorrentes custos de desenvolvimento aplicativo, que acompanham a complexidade das alterações que decorrem de cada novo Orçamento de Estado.

Aqui chegado, resta-me afirmar que estou radicalmente contra a política anunciada por Bagão Félix - e começo também a criar alguma aversão às suas falinhas mansas de cura paroquial, com aquela demagogia barata dos pobrezinhos e mais necessitados que a nossa esquerda já comprou - mas por razões diferentes do CAA. Defendo um sistema fiscal claro, simples e transparente, onde portanto não cabem benefícios fiscais de qualquer espécie - a lei deve aplicar-se a todos e não apenas aos que mais podem. Nesta óptica, não defendo qualquer alteração pontual ao regime dos PPRs, PPAs e CPHs, mas sim a extinção, pura e simples de todo o Estatuto dos Benefícios Fiscais. Há uma grande hipocrisia na qual todos vimos sendo coniventes no nosso regime fiscal. Defende-se por um lado (eu não!!!) a progressividade nos impostos directos, mas criam-se por outro lado mecanismos que a atenuam ou mesmo anulam, apenas ao alcance de quem disponha de capacidade de poupança. A este propósito, refira-se que, para maximizar a dedução fiscal, haverá que investir anualmente naqueles 3 produtos cerca de 7.600 euros, qualquer coisa como metade do salário médio anual. Mas a minha objecção de fundo tem a ver com a política orçamental que se me afigura vai ser seguida, a avaliar pelas declarações que vão sendo proferidas. Apenas mais do mesmo!

Nas várias intervenções e entrevistas de Bagão Félix ainda não lhe ouvi uma medida concreta que pretenda tomar com vista à redução da despesa pública. E medidas de fundo, terão de passar inevitavelmente pela redução do pessoal da administração pública, pelo cumprimento da já antiga promessa de extinção da maioria dos Institutos Públicos, pela redução drástica de subsídios de toda a espécie, pela venda ou oferta da RTP, pela racionalização das empresas de transporte público que, em Lisboa e no Porto deveria passar pela completa municipalização, pela eliminação do enorme desperdício na saúde e na educação, pela reforma do financiamento das autarquias, quiçá pela extinção de vários ministérios. Bem pelo contrário, o rigor orçamental eternamente propalado, consubstancia-se sempre na maximização da receita, na eterna ladaínha do combate à fuga e fraude fiscais, o alargamento da base tributável, condição sine qua non de maior "justiça social", em suma, no aumento da carga fiscal. O fim de alguns benefícios fiscais, medida avulsa apresentada de forma beatífica, não numa lógica económica, mas de pretensa moralidade que a torne indiscutível, insere-se nesta filosofia perversa de aumentar a receita fiscal em mais uma fuga para a frente. Como a despesa continua em crescendo, isto começa a tornar-se insustentável.