10.7.05

A Guarnição de Safim (em 1511) ou um contributo para a "história genética" da Dívida Pública portuguesa.

Deparei, recentemente, com um livro de João Cosme, editado, em 2004, pela Caleidoscópio/Centro de História da Universidade de Lisboa, intitulado, precisamente, A guarnição de Safim em 1511.

Inicialmente, pensei poder tratar-se de uma daquelas monografias (frequentes, em certos tipos de trabalhos académicas) sobre um pequeno pormenor, bem menor, da História que, naturalmente, apenas interessa (quando não é elaborado em "espírito de obrigação") ao respectivo autor, sendo, contudo, profundamente desinteressante para o mundo em geral, e para a Humanidade, em particular.

Enganei-me. Trata-se de um estudo cuja leitura poderá ser muito proveitosa. É, sem dúvida, um excelente contributo para uma pré-teoria do Estado (actual) português. Apesar de nada indiciar que tivesse sido essa a intenção do autor...

Importa referir que o estudo de João Cosme centra-se, sobretudo, na edição do Rol dos mantimentos, de direitos e soldos e tenças de derradeiro quartel de b'xj, a cargo do feitor em Çafim.
Nele estão inscritos os nomes dos fronteiros, seus acompanhantes e o que cada um recebeu durante dos últimos 3 meses de 1511. Tais pagamentos (suportados pela Coroa) ocorreram durante o 1º semestre de 1512.

Situando brevemente o leitor, pode ler-se na referida obra que Safim - conquistada pelos Portugueses em 1508 - situa-se na região da Duquela, a sul do cabo de Cantim. Desde sempre foi uma cidade (relativamente) importante. A sua localização geográfica tornava-a num entreposto de navegação de cabotagem. Era um ponto referência para as incursões e navegações magrebinas.
Ultrapassando, por agora, as vicissitudes da conquista desta cidade do Reino de Marrocos, bem assim como as disputas "marroquinas" entre Castela e Portugal e o respectivo contexto político (tudo pontos abordados no texto de João Cosme), poder-se-á dizer que, apesar de tudo, nunca a expansão portuguesa teve em Çafim um ponto decisivo, incontornável. No fundo, independentemente da questão das rotas e da navegação magrebina, sob o ponto de vista económico e mercantil, nunca o Reino teve nessa cidade do Norte de África um grande retorno, ou, pelo menos, um retorno que a tornasse (nesta perspectiva) estratégica.

Apesar de tudo, o facto é que, consultando tal Rol (uma espécie de sumário da conta de Çafim) verificamos que a respectiva guarnição, para além do Capitão Nuno Fernandes de Ataíde, funcionava com:

- 11 "Homens de pé" do Capitão,
- 24 Escudeiros (para além de 7 "Homens por conta dos Escudeiros");
- tinha 1 administrador (com o título de contador - na prática a segunda figura da guarnição),
- 1 feitor e 1 porteiro dos Contos,
- 1 escrivão dos Contos e outro escrivão do Almazem e Mantimentos,
- 1 almoxarife,
- 21 criados de El -Rei e respectivos "Homens por conta" (El-Rei que, apesar da criadagem instalada, nunca lá pôs os pés!),
- 1 vigário,
- 1 vigário e Capelão,
- 13 Clérigos (entre fradres, pregadores, priores) e respectivos 4 "Homens por conta".

- Além disso, a guarnição dispunha ainda de 4 Homens que desempenhavam os denominados "Ofícios de Saúde", a saber, 4 barbeiros.

No Rol estão também nominados Atalaias e Trombetas, em número de 15.
Existiam, ainda, por conta e pagos pela Coroa:
- 31 Degredados; vários cambadores, 1 cirurgião, vários armeiros, 1 "língua" (o tradutor), Homiziados (pessoas que tinham cometido um crime, mas que tinham fugido à justiça).

E há, ainda, referência, no dito Rol, à existência de Mouros e Judeus (estes desempenhavam actividades financeiras, pagas pela Coroa), sapateiros, ferradores, alfaiates, pedreiro e mestre-de-açucar (se bem que estes, normalmente, eram também militares).

Tudo isto - bem entendido - para além dos Militares propriamente ditos que compunham a guarnição:
3 Ordenanças, 4 Homens das Carretas, 12 Bombardeiros, 32 Espingardeiros, 34 Besteiros de pé, 31 Besteiros a cavalo (e respectivos cavalos), 111 soldados a pé (Gente de pé) e outros tantos a cavalo (Gente de cavalo).

Pois bem, a título de exemplo - seria fastidiosos discriminar, aqui, todos os ordenados, avenças, tenças e demais pagamentos registados no dito Rol, referente ao 4º Trimestre de 1511, em Çafim - poder-se-á referir que os gastos mensais da Coroa, com esta gente toda, variavam, por cabeça, entre os 114.000 reais para o capitão e os 85 reais para cada um dos Degredados e Homiziados.
Os ordenados dos já mencionados Criados de El-Rei variavam, por seu turno, entre os 135 reais e os 185 reais. Consta, também, que um Rabi Abrãao, com o cargo de físico, recebia uma tença anual de 12.000 reais. A cada um dos Clérigos eram também devidos 135 reais por mês.

Claro está que não consta que houvesse subsídio de férias (nem tão pouco férias), de Natal ou qualquer outro mês pago, para além dos 12 do nosso calendário. No entanto, o facto é que suportar uma não muito estratégica, nem relevante (em termos de retorno) cidade de Çafim, implicava todo este significativo peso e estrutura orgânico-administrativa da Coroa!

Existiam, como é sabido e historicamente documentado, inúmeras guarnições (mais importantes e bem maiores do que esta de Çafim).

É certo, porém, que, para além das Índias e dos Brazis, ainda estavam longe os "pactos de estabilidade".
No entanto, a irresistível atracção pela despesa pública já dava, aparentemente, sinais de vida!