A obra "A República", de Platão, no seu Livro VII, contém uma interessante menção ao que hoje designaríamos por Matemática. Buscando aquilo que fosse capaz de elevar a alma "até à realidade", de arrastar "a alma do que é mutável para o que é essencial", mantendo, contudo, o aspecto pragmático de "não ser inútil a guerreiros", o autor coloca em primeiro plano "aquela ciência comum, da qual se utilizam todas as artes, todos os modos de pensar, todas as ciências - e também aquela que é preciso aprender entre as primeiras": a "ciência dos números e do cálculo".
Tal ciência seria necessária a uma pessoa, ainda segundo o mesmo texto, "se quiser ser um homem". Dado que a "ciência dos números e do cálculo" poderia "conduzir à verdade" uma das figuras do diálogo, Sócrates, sugere à outra, Gláucon, que "se determinasse por lei este aprendizado".
Para Platão, seria defensável chegar "à contemplação da natureza dos números unicamente pelo pensamento, não cuidando deles por amor à compra e venda, como os comerciantes e retalhistas, mas por causa da guerra e para facilitar a passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência".
O autor conclui ainda que "os que nasceram para o cálculo nasceram prontos, por assim dizer, para todas as ciências, e que os espíritos lentos, se forem instruídos e exercitados nele, ainda que não lhes sirva para mais nada, de qualquer maneira lucram todos em ganhar maior agudez de espírito".
Teria Platão, neste caso, razão, será a "ciência dos números e do cálculo" necessária a alguém que queira "ser um homem"? Ou terá razão K.R. Popper (A sociedade aberta e os seus inimigos, Vol.1), escrevendo sobre Platão, quando diz que "grandes homens podem cometer grandes erros"?
Será verdadeira a alegação de Platão, segundo a qual a capacidade para o cálculo nasceria com cada um de nós, podendo embora ser treinada através do estudo?
A "ciência dos números e do cálculo" tornou-se algo de utilidade incontestável no mundo contemporâneo, e um dos principais cometimentos da civilização humana, a Ciência e o correspondente método científico, baseiam-se, em larga medida, nas ciências matemáticas. De facto, com elevada frequência, toma-se por comprovado aquilo que for passível de demonstração através de números, ou seja, através de prova factual, empírica. A chegada do Homem à lua servirá de paradigma de aplicação prática de cálculos complexos, aplicados à tecnologia apropriada, derivada da Ciência.
O desenvolvimento da electrónica e da informática, elas próprias altamente dependentes das ciências matemáticas, vieram, de alguma maneira, encerrar o círculo, na medida em que tornaram acessível o cálculo matemático à generalidade das pessoas. Mediante a utilização de programas informáticos disponíveis generalizadamente, qualquer pessoa pode executar cálculos que assombrariam, porventura, o próprio Platão.
Poderá justificar-se uma nota para comentar o facto de que o texto de Platão critica a utilização do cálculo em razão do "amor à compra e venda", em boa consonância com a filosofia política geral do autor, o qual visaria, ainda segundo o seu crítico K.R. Popper, "a paralisação e a subversão de uma civilização que reprovava".
Salvo melhor opinião, tal como acontece com escritos de outros autores, porventura com especial relevo para a "Política" de Aristóteles, a rejeição de alguns aspectos cruciais do pensamento de cada autor não nos deve, de maneira nenhuma, levar à rejeição do conjunto do pensamento expendido pelo autor. Idêntico raciocínio levaria à rejeição da vasta maioria dos escritos do século XX, muitos dos quais são baseados em pressupostos hoje frequentemente reconhecidos como errados, entre os quais a "luta de classes", por um lado, e o não reconhecimento da igualdade de direitos e de dignidade entre as pessoas, por outro lado.
Haverá ainda lugar para o pensamento sem base numérica? Sem dúvida que sim: na Filosofia, na Arte, no pensamento Jurídico. A própria "República" constitui uma demonstração intemporal da força do pensamento abstracto sem suporte empírico. Será notável, na nossa opinião, a capacidade de Platão para, em alguma medida, antecipar a importância decisiva dos números para o progresso da Humanidade. Tal fenómeno poderá ser mais do que mera coincidência: é que existem, no momento presente, inúmeros seguidores, quer de Platão, quer de Aristóteles, muito embora parte considerável dos mesmos possa nunca ter lido nenhum texto destes dois grandes pensadores.
José Pedro Lopes Nunes
Nota: "A República" encontra-se publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian (tradução de Maria Helena da Rocha Pereira), edição da qual foram retiradas as citações constantes neste texto.
Tal ciência seria necessária a uma pessoa, ainda segundo o mesmo texto, "se quiser ser um homem". Dado que a "ciência dos números e do cálculo" poderia "conduzir à verdade" uma das figuras do diálogo, Sócrates, sugere à outra, Gláucon, que "se determinasse por lei este aprendizado".
Para Platão, seria defensável chegar "à contemplação da natureza dos números unicamente pelo pensamento, não cuidando deles por amor à compra e venda, como os comerciantes e retalhistas, mas por causa da guerra e para facilitar a passagem da própria alma da mutabilidade à verdade e à essência".
O autor conclui ainda que "os que nasceram para o cálculo nasceram prontos, por assim dizer, para todas as ciências, e que os espíritos lentos, se forem instruídos e exercitados nele, ainda que não lhes sirva para mais nada, de qualquer maneira lucram todos em ganhar maior agudez de espírito".
Teria Platão, neste caso, razão, será a "ciência dos números e do cálculo" necessária a alguém que queira "ser um homem"? Ou terá razão K.R. Popper (A sociedade aberta e os seus inimigos, Vol.1), escrevendo sobre Platão, quando diz que "grandes homens podem cometer grandes erros"?
Será verdadeira a alegação de Platão, segundo a qual a capacidade para o cálculo nasceria com cada um de nós, podendo embora ser treinada através do estudo?
A "ciência dos números e do cálculo" tornou-se algo de utilidade incontestável no mundo contemporâneo, e um dos principais cometimentos da civilização humana, a Ciência e o correspondente método científico, baseiam-se, em larga medida, nas ciências matemáticas. De facto, com elevada frequência, toma-se por comprovado aquilo que for passível de demonstração através de números, ou seja, através de prova factual, empírica. A chegada do Homem à lua servirá de paradigma de aplicação prática de cálculos complexos, aplicados à tecnologia apropriada, derivada da Ciência.
O desenvolvimento da electrónica e da informática, elas próprias altamente dependentes das ciências matemáticas, vieram, de alguma maneira, encerrar o círculo, na medida em que tornaram acessível o cálculo matemático à generalidade das pessoas. Mediante a utilização de programas informáticos disponíveis generalizadamente, qualquer pessoa pode executar cálculos que assombrariam, porventura, o próprio Platão.
Poderá justificar-se uma nota para comentar o facto de que o texto de Platão critica a utilização do cálculo em razão do "amor à compra e venda", em boa consonância com a filosofia política geral do autor, o qual visaria, ainda segundo o seu crítico K.R. Popper, "a paralisação e a subversão de uma civilização que reprovava".
Salvo melhor opinião, tal como acontece com escritos de outros autores, porventura com especial relevo para a "Política" de Aristóteles, a rejeição de alguns aspectos cruciais do pensamento de cada autor não nos deve, de maneira nenhuma, levar à rejeição do conjunto do pensamento expendido pelo autor. Idêntico raciocínio levaria à rejeição da vasta maioria dos escritos do século XX, muitos dos quais são baseados em pressupostos hoje frequentemente reconhecidos como errados, entre os quais a "luta de classes", por um lado, e o não reconhecimento da igualdade de direitos e de dignidade entre as pessoas, por outro lado.
Haverá ainda lugar para o pensamento sem base numérica? Sem dúvida que sim: na Filosofia, na Arte, no pensamento Jurídico. A própria "República" constitui uma demonstração intemporal da força do pensamento abstracto sem suporte empírico. Será notável, na nossa opinião, a capacidade de Platão para, em alguma medida, antecipar a importância decisiva dos números para o progresso da Humanidade. Tal fenómeno poderá ser mais do que mera coincidência: é que existem, no momento presente, inúmeros seguidores, quer de Platão, quer de Aristóteles, muito embora parte considerável dos mesmos possa nunca ter lido nenhum texto destes dois grandes pensadores.
José Pedro Lopes Nunes
Nota: "A República" encontra-se publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian (tradução de Maria Helena da Rocha Pereira), edição da qual foram retiradas as citações constantes neste texto.