2.3.06

As tertúlias e o Pipi ou a pré-história do Blasfémias

Não é muito habitual falar de nós, mas face aos nossos 2 aninhos que ontem se completaram, vale a pena abrir uma excepção para relatar as circunstâncias das nossas origens e "pré-origens", com algum compreensível panegírico narcisista à mistura. No fundo o Blasfémias, como muitos outros blogues, foi fruto da livre contratualização de alguns agentes, convencidos que haveria um mercado potencial a satisfazer.

Mas recuemos 6 anos. Algures pelo ano 2000 e por iniciativa do Paulo Morais foi constituída a Tertúlia das Antas, destinada a discutir "temas políticos estruturantes" à volta de uma mesa e após bem fornido repasto. Foi nos animados debates dessa mesma Tertúlia, que desde então tem reunido religiosamente uma vez por mês, que conheci, entre outros, o CAA, o CL, o JPLN e o PMF, habitués da dita e donde provinham sempre das mais qualificadas intervenções. Num grupo assaz heterogéneo com participantes da esquerda à direita, foram-se naturalmente alinhando tendências e daí à formação espontânea de um grupinho liberal, por sistema o mais tonitruante, foi um passo. O passo seguinte foi um amável convite do CAA e do JPLN para eu integrar o portuense "Círculo Liberal", entretanto extinto por integração na Causa Liberal.

Com o aprofundamento das afinidades políticas - e também das naturais e subsequentes relações de amizade - os contactos, designadamente epistolares, passaram a ser frequentes. O CAA então, tinha - e mantém - o saudável hábito de nos enviar SMSs com notícias de última hora, não fosse escapar-nos algo de relevante. É assim que, em Maio de 2003, recebo dele um SMS algo intrigante: "o Pacheco Pereira tem um blogue ?
www.abrupto.blogspot.com". Naquela minha apagada e vil ignorância, nunca eu tinha ouvido falar de blogues. Mas, curiosidade aguçada, lá digitei o endereço para ver do que se tratava e de imediato me fascinou o universo blogosférico, seja pelo espaço de total liberdade que ele representava, seja pelos temas em discussão, muitos deles - designadamente tudo o que respeitasse ao liberalismo clássico - eram então tabu nos media tradicionais.

Jamais equacionei porém escrever num blogue. Não que duvidasse das minhas parcas qualidades de escriba, mas porque criar um sítio na web afigurava-se-me como tarefa ciclópica, apenas ao alcance das mais reputadas software houses. Para além disso, escasseavam-me horas de lazer para manter um blogue individual, que isto ou se trabalha, ou se é universitário/intelectual/jornalista e escreve-se em blogues. Eis senão quando, uma bela noite, vou ter a um novo blogue através de um link e deparo com estas postas. A assinatura CAA e o estilo inconfundível que eu há muito conhecia não me levantavam grandes dúvidas. Mas, para me certificar, enceto de imediato uma troca de e-mails:
- Oh seu sacanóide, o blogue Mata-Mouros não será porventura da tua autoria?
- Sim, é meu e do CL.
- Grandessíssimos estupores, traidores de uma figa, individualistas de um raio, onde está a solidariedade liberal?! Também quero mandar umas postas! Não pode haver 2 sem 3, exijo ser o 3º matador!

Modéstia à parte, quer-me parecer que o termo "posta" se generalizou a partir desta minha colérica reclamação, tornando assim mais rico o vocabulário lusíada. Claro que a reclamação teve satisfação. E tão pronta ela foi que o CL, ainda hoje o nosso "guru" em assuntos informáticos, até me cedeu o seu username, o que levou a que lhe tenha "usurpado" a autoria de 3 postas. Assim, o seu a seu dono, as 3 primeiras postas que aparecem assinadas por mim, foram de facto escritas pelo CL. Eu estreei-me com esta.

O Mata-Mouros foi fazendo o seu percurso muito mais rapidamente do que alguma vez sonháramos e, vá lá saber-se porquê, em breve se instalou no top 25 das audiências. Não tínhamos caixa de comentários mas, em contrapartida, estávamos com a caixa de e-mail sempre a abarrotar, o que nos dava uma trabalheira do caraças em obrigações epistolares. E foi assim que tivemos o primeiro contacto com o Gabriel, na altura blogueiro do Cidadão Livre, nascido precisamente no mesmo dia que o Mata-Mouros. Imagine-se que o biltre veio reclamar junto de nós pela classificação do seu blogue nos nossos links. No Mata-Mouros tínhamos uma original classificação dos blogues linkados, de acordo com a respectiva natureza. Para os blogues políticos, havia o grupo "Santa Aliança" que integrava os liberais, os "Infiéis" que abarcava tudo o que ia da esquerda socialista à folclórica, os "Coloridos" para os que tinham uma agenda partidária e os "Nins" para aqueles que considerávamos não serem carne nem peixe. Claro que o Cidadão Livre era por nós considerado um Santíssimo Aliado, o que não merecia o acordo do danado do Gabriel, pobre pecador, que achava mais correcto (pasme-se!) ser integrado no grupo dos "Nins". E foi o cabo dos trabalhos convencê-lo que um Cidadão Livre é por definição um liberal de primeiríssima casta e quão desprestigiante seria colocá-lo junto daqueles que não cheiram nem fedem. Certo é que o rapaz ficou de tal forma convencido, que nos sugeriu um encontro à volta de umas cervejolas, evento que jamais se realizou por uma irritante desarticulação de agendas.

Precisamente um mês depois do Mata-Mouros e do Cidadão Livre, nasce o Cataláxia que desde logo se destacou pela excelsa qualidade dos seus textos e pela profundidade teórica das suas análises, indiscutivelmente do melhor e mais sumarento que havia - e há - na blogosfera. Intrigado com tamanho brilhantismo perguntei ao CAA se conhecia a criatura que o assinava:
- Muitíssimo bem. Somos companheiros de longa data em várias lides...

Recatada discrição impediu que o inquirisse sobre a natureza de tais lides. Mas desde logo ali estabelecemos que no próximo jantar da Tertúlia se discutiria o fenómeno da blogosfera e se convidariam a estar presentes os autores de vários blogues das redondezas. Foi então chegada finalmente a oportunidade de conhecer os nossos futuros companheiros, com excepção do João Miranda, que só se dignou aparecer alguns meses após, com as orelhas fervilhantes face às pragas que entretanto lhe foram rogadas por tamanho isolacionismo. A Tertúlia enriqueceu-se desde então com novos elementos - para além de todos os futuros blasfemos, passaram também a ser membros permanentes o Daniel Fortuna e o Dupont - e tem a enorme vantagem de permitir articular a sua realização com subsequentes Conselhos Blasfemos, finalizando-se a digestão do repasto com a preciosa ajuda de "malte envelhecido".

Quanto à Tertúlia estamos conversados (ou quase). Entretanto a blogosfera ia fazendo o seu caminho e, depois do boom de meados de 2003 em que surgiram largas centenas de blogues, notou-se como que alguma saturação nos últimos dois meses, visível numa quebra generalizada de audiências. No último dia do ano, escrevia nesta posta premonitória:

Os processos de consolidação redundam geralmente em fusões e é provável que elas também venham a ocorrer nos blogues num futuro próximo. É difícil a um blogue individual manter uma cadência certa, uma actualização permanente, fundamental à fidelização de leitores. Um blogue colectivo (e não colectivista, entenda-se), conseguirá mais facilmente manter um ritmo acelerado e será sempre mais procurado. O sucesso do
Barnabé, confirma para já esta tese. E se todos cá andamos fundamentalmente pelo gozo que daqui retiramos, o sermos lidos é a motivação que nos faz persistir e melhorar, sendo isto válido para a grande maioria.

Certo é que já havíamos começado a fazer alguma "reflexão estratégica" e, em finais de Janeiro de 2004 já tinhamos decidido encetar um "processo de concentração capitalista". E os "alvos" foram precisamente o Cataláxia e o Cidadão Livre, a quem acordámos abordar com vista a um processo de fusão amigável - na blogosfera, ainda não há memória de OPAs hostis. Assim, combinámos um encontro no lançamento do livro do Pipi realizado a 12/02/2004 e para o qual todos foramos convidados para daí debandar após os autógrafos (que não houve) para sítio mais sossegado e atreito a conspirações. Na altura relatei o evento em jeito de "crónica social" e dei um pequeno "lamiré" no final da posta:

No meio de todo este frenesim, avisto o
Rui encostado ao canto do bar, com o seu eterno ar blasé, charuto de 40 cm já quase consumido, copo vazio e semblante algo contrariado:
- Luís, vamo-nos pirar, que isto já deu o que tinha a dar. Vamos beber um copo a um sítio sossegado e onde possamos cortar na casaca à vontade.
Arrastamos também o CL e o Gabriel e lá fomos "regar" a noite com mais uns uísques num vetusto salão do Ateneu, discutindo animadamente a conjuntura e a estrutura. Mas isso será tema para outras postas...

A "reunião conspiratória" foi, garantidamente bem "regada", sendo curioso notar como os "copos" têm desempenhado um papel marcante ao longo do nosso percurso blogosférico. Claro que se discutiu mais a "estrutura", sendo que o objectivo era poder no futuro resistir melhor à conjuntura. Os "visados" aceitaram de imediato e de muito bom grado a proposta de fusão e desde logo se decidiu lançar o novo blogue no dia 1 de Março, para além de 1.000 projectos a prazo que ali se formularam, poucos já concretizados, outros a caminho, muitos em estudo. Em reuniões posteriores, sempre no Ateneu onde estabelecemos a nossa "Sede Constituinte", foi deliberado integrar o PMF e dar um toque feminino ao novo blogue com a germânica Sara Muller, que ultimamente nos tem dado sistematicamente "com os pés", ocupada que anda com outras "lides" nórdicas...

A última reunião foi sem dúvida a mais penosa: tratava-se de escolher o nome do blogue, que se pretendia tivesse algum impacto e, de certa forma, reflectisse a nossa forma de estar. Milhentos nomes vieram à baila, qual deles o mais espatafúrdio a gerar crescentes gargalhadas ou imprecações. Até que alta madrugada, já todos ensonados e desesperados, o Gabriel sai-se com esta, enquanto recolhia a trouxa:
- Porra, desisto! Estamos aqui há horas a blasfemar e a nossa criatividade a afundar-se. Pode ser que ela retorne depois de um bom sono.
E já se encaminhava para a saída, quando repentinamente se volta, fácies iluminado com sorriso de orelha a orelha:
- É isso!!! BLASFÉMIAS!!!
- Eureka!!!

E lá nasceu o novo blogue, ainda em 29 de Fevereiro, tal era a vontade da Sara em começar a blasfemar. As expectativas mais optimistas foram superadas, tamanho foi o impacto da primeira blogo-fusão. E como em equipa que ganha às vezes vale a pena mexer, ao fim de 2 meses já estávamos a preparar nova fusão. Uma discreta abordagem no final de uma Tertúlia (mais uma vez...), acordo de princípio logo ali estabelecido e, a 29 de Maio é anunciada a fusão com o Liberdade de Expressão do já lendário João Miranda, idolatrado por uns, odiado por outros, indiferente para ninguém. Passado pouco mais de um mês, abrimos o "mercado das blogo-contratações" com a entrada do AAA, insigne investigador e inventor do liberalómetro.

A partir daí, ganhámos de facto massa crítica e não havia tema político/económico/social que nos escapasse com algum de nós sempre oportuno na crítica mordaz, no apontar da contradição, no desenvolver da tese alternativa e estruturante. Nem por isso abrandámos com as contratações. Já em 2005, debutou o RAF nestas lides, imbatível na argumentação teórica, seguindo-se o cartoonista Sergei (mais uma inovação blogosférica), o sempre ponderado e literato JPLN e finalmente o sulista e lagarto (gghhrrrrr!!!) JCD, único na ironia, implacável na sátira.

Crises? Também tivemos, evidentemente, coisa normalíssima de acontecer num grupo tão heterogéneo, mas sempre ultrapassadas de forma amigável. Por motivos cuja gravidade o tempo atenuará e tornará porventura risíveis, o AAA, o RAF e o Rui passaram à categoria de blasfemos honorários. Mas nesta vida, só a morte e os impostos são irreversíveis.

Ao fim de dois anos, uma eternidade neste meio, mantemos as mesmas pretensões de crescer, 1.000 projectos pendentes, uns na forja, outros embrionários, idêntico ânimo para mudar, continuando sempre iguais a nós próprios num colectivo que não abdica do extremo individualismo dos que o integram, mas irmanados no singelo e estruturante objectivo que sempre nos norteou: fazer opinião numa perspectiva liberal. E, modéstia à parte, já vamos fazendo alguma.