28.12.06

História exemplar no JN de hoje

«Fará na próxima semana 19 anos que morreu na sua residência da Rua Carlos Malheiro Dias, n°156, uma bondosa senhora chamada Alice Rosa Santos Sá que deixou uma parte da sua fortuna às 10 instituições que lhe disseram cuidar melhor das crianças mais carentes do Porto. Por obrigações estatutárias, duas dessas instituições tiveram que repudiar a sua parte na herança, o que imediatamente foi feito. Depois disso, reunidas em comissão, as restantes oito instituições procuraram tomar posse do que lhes havia sido legado. Pensavam a coisa simplicíssima, como o tem sido das outras vezes em que isso tem acontecido. Chamados ao Tribunal, os seus representantes eram notificados de que as suas instituições tinham sido contempladas pelo legado tal, perguntados se o aceitavam, e pronto. Tudo sempre se tem resolvido rapidamente.

Não desta vez. Pelo menos, que nos lembre, nunca fomos chamados a Tribunal, o processo apareceu não se soube bem como e tem-se arrastado anos e anos, secreto e enervante. Por muito que se tenha querido esclarecer, nunca foi possível, por isto ou por aquilo. Lembramo-nos que muito mais tarde nos foi dito, não oficialmente, que o processo tinha sido retido em Lisboa, durante 5 anos, só porque uma entidade pública que, certamente por lapso tinha sido incluída, tinha mudado de nome, tirando 3 ou 4 palavras à designação inicial. Outra vez foi uma implacável funcionária da Câmara do Porto que exigiu, da testamenteira, certidões assinadas por todos os beneficiados, afirmando que tinham tomado posse do legado, quando nenhum deles a tinha tomado. E os anos foram-se passando. Levaram-nos a constituir advogado, mas nem assim. O último entrave, se é que é o último, diz respeito e uma repartição que perdeu uma declaração de repúdio e que exige outra. Lá se resolveu como se pôde, mas fica a pergunta que culpa têm as crianças que os funcionários tenham perdido o documento? E o processo continua, até quando ninguém sabe dizer. Dezanove anos já passaram, e os vinte aproximam-se. ###
É possível que apesar de toda a sua boa vontade, nem tudo tenha sido feito como deveria ser, temos que admitir, mas não seria do dever de quem sabe, ensinar os que não sabem? Tanto mais que o legado é constituído por casas geradoras de rendas. Terão estas alguma vez sido pagas? A quem? Depositadas? Onde e em nome de quem? As rendas não serão altas, mas mesmo assim, 19 anos de acumulação já será alguma coisa, sobretudo para crianças pobres. E outra pergunta: como serão recebidas essas casas depois de andarem à balda durante 19 anos? E não queremos fazer mais perguntas.

O que se não poderá dizer é que este processo de 19 anos passou despercebido entre os milhares que enchem as nossas repartições. Já por 4 ou 5 vezes aqui foi chamado ao primeiro jornal português, sob o título bem vocativo de «Escândalo». Se o substituímos, é apenas porque pensamos que terá caído no domínio público e mediático, e preferimos dizer apenas que não compreendemos como tudo isto é possível em Portugal. Alguém terá o processo na sua mesa e saberá melhor do que nós porque é que, 19 anos depois, a herança continua a ser sonegada aos que, de nós, mais merecem e precisam.

Há uma coisa que queremos assinalar bem passaram-se 19 anos, no dia 5 de Janeiro de 2008 cairá sobre o sonho destas crianças a data fatídica dos 20 anos. Alguém o quererá?»

http://jn.sapo.pt/2006/12/28/opiniao/incompreensivel.html