23.12.06

Não aplicar certas leis


Aquilo que, a prazo, decidirá se a democracia portuguesa evoluirá, ou não, para uma ditadura da maioria - uma situação em que a vida de cada cidadão nos seus mais ínfimo detalhes, privacidades e interesses - ficará à mercê do poder executivo do momento, é o poder judicial e, em particular, esse grupo de homens e mulheres que são o centro do poder judicial - os juizes.###

A ditadura de um déspota impõe-se através de um número relativamente reduzido de leis - leis que são curtas, claras e precisas. A função principal dos juizes neste regime é a de aplicar as leis, pois é da aplicação estrita das leis que depende a sobrevivência do regime.

A ditadura da maioria impôe-se de uma forma diferente. Impõe-se pela multiplicidade das leis, pela inflação legislativa. Quando, a propósito de cada assunto da vida em sociedade, a democracia tiver gerado um número suficientemente grande de leis, e de leis que, em geral, são extensas, frequentemente obscuras e contraditórias, qual é a lei que vai prevalecer? A resposta é: aquela que a entidade que tiver poder para fazer cumprir as leis decidir que é a lei aplicável a esse assunto, entre a multiplicidade de leis que a esse assunto se referem. Esta entidade é o poder executivo - o governo - pois é ele que controla a polícia.

Por isso, numa democracia, a função principal dos juizes não é aquela a que eles estavam habituados em resultado de uma herança de séculos de regimes autoritários e frequentemente despóticos - a de aplicar as leis, todas as leis, que emanam dos outros poderes do Estado. Num regime democrático, a principal função dos juizes é a de não aplicar certas leis - aquelas que entram em conflito com leis de ordem superior e, em última instância, com a Constituição.

É pela via de um poder judicial possuindo uma cultura democrática - e cujo primeiro princípio de acção é "Não aplicar certas leis" - que se limpa o sistema legal da inflação legislativa que a democracia tende a produzir, e se previne que a democracia descambe para aquilo que, de outro modo, será apenas uma outra forma de ditadura - a ditadura da maioria.