O chamado «argumento económico» sobre o refendo ao aborto não se limita, ao contrário do que pretendem os seus detractores, a uma mera contabilidade de deve e haver sobre os benefícios e os prejuízos das medidas propostas pelo governo sobre a sua inclusão no SNS. Ele comporta essa e outras dimensões que o governo não tomou em devida conta e devia ter tomado. As seguintes, a saber:
1. Económica. Num país que se debate com falta de meios para quase tudo, em que, particularmente, a saúde tem vindo a ser descurada pelos sucessivos governos, seja ao nível da prevenção, seja ao nível da assistência, não parece uma prioridade de saúde pública canalizar verbas para a prática gratuita do aborto. Só nesta última semana, discutiram-se a falta de meios de emergência e socorro no Alentejo, onde existe um único veículo de emergência médica para toda a região, e a não inclusão da nova vacina contra o cancro do útero no programa nacional de vacinação. Neste último caso, calcula-se que morra diariamente uma mulher em Portugal vítima dessa doença, cuja vacina está à venda por 480,00 euros, e, que se saiba, o Estado ainda não manifestou qualquer intenção de comparticipar nesses custos. É, por isso, difícil aceitar que o mesmo Estado que se queixa de falta de recursos para destinar à saúde, já os tenha para interromper gravidezes que não envolvam qualquer risco de saúde para a mãe ou para o feto. Não se espantem, por isso, se as pessoas forem mais sensíveis do que seria previsível a esta dimensão do problema. Não é egoísmo. É sensatez.###
2. Moral. Se aceitarmos que a decisão de abortar só pode ser tomada pela grávida e que mais ninguém deve interferir nela por dizer somente respeito à sua consciência, não podemos depois pedir ao Estado, isto é, à colectividade que ele representa, que assuma a responsabilidade de facultar os meios necessários a essa decisão. Por outro lado, se todos estamos de acordo em reconhecer que o aborto é um flagelo com sérias consequências emocionais e psíquicas para quem aborta, e que ele representa uma decisão-limite própria de quem não pode encarar outra senão essa, então, dificilmente poderemos sustentar um sistema que levará inevitavelmente ao facilitismo, ao laxismo e à desresponsabilização. Dito de outro modo, o assistencialismo do Estado fará com que as pessoas, sobretudo as mais jovens, olhem para o aborto como um vulgar acto médico sem repercussões pessoais, e não com uma decisão individual que quase certamente comportará consequências complexas para quem o decide enfrentar. O Estado não deverá perseguir, julgar e condenar quem aborta: é uma atitude liberal. O Estado deve apoiar financeiramente quem quer abortar: é uma atitude socialista.
3. Ideológica. «Máxima liberdade, máxima responsabilidade» é o que os liberais pensam da relação do indivíduo com a esfera pública, isto é, com o Estado. Não é, portanto, simultaneamente sustentável arguir-se a despenalização do aborto por razões de consciência individual da mãe e pretender que seja o Estado a responsabilizar-se por essa decisão. Faz lembrar um pouco aquela ancestral reclamação sobre a qualidade dos nossos empresários, de que estão sempre a queixar-se do Estado e a pedir-lhe sustento. Obviamente que se reclamamos que o Estado não deva punir quem aborta por se tratar, única e exclusivamente de uma decisão que só diz respeito à mãe, não podemos no momento imediatamente seguinte pretender responsabilizar a comunidade por essa decisão. São coisas diferentes, decisões distintas e que não deveriam ter sido confundidas, como o estão a ser.
Conclusão. Esta proposta sobre a lei do aborto é socialista. Resulta de uma visão sobre a natureza e das funções do Estado e do indivíduo que não é liberal. Não devemos levar isso a mal, porque todos temos direito a defender aquilo em que acreditamos. Mas, também, quem for convictamente liberal, não o poderá ignorar. Teria sido, portanto, mais compreensível que o governo tivesse legislado sobre o assunto como entendesse (tinha legitimidade política para isso), em vez de se ter escudado num referendo que nos envolverá a todos e que, ainda por cima, não anuncia com clareza a plenitude das consequências de cada uma das decisões em causa. Se tivesse decidido por via legislativa, daqui por algum tempo, em próximas eleições legislativas, um novo governo poderia alterá-las. Aparecendo elas na dependência do referendo, terá inevitavelmente que as submeter a um outro referendo, o que é impensável. Cada um que retire daqui as conclusões que entender.
P.S.: Para evitar a repetição de comentários ao «post», como o de que «é falso que quem votar "sim" se comprometa com o subsídio de abortos no SNS» (José Barros), aqui vão três links sobre as declarações do senhor Ministro da Saúde a esse respeito: 1, 2 e 3. Estas declarações têm por adquirido que, para o governo, a despenalização do aborto implica a sua sustentação pelo Estado. Até agora, que se saiba, não foram desmentidas por ninguém. Evidentemente que se poderá sempre alegar que uma coisa é o momento do referendo, e que outra será a decisão legislativa do governo em integrar a interrupção voluntária da gravidez no elenco das obrigações do SNS. E que, por conseguinte, no futuro, qualquer outro governo poderá modificar livremente esta última, mantendo o respeito pelo primeiro (o mesmo José Barros sugere, provavelmente pretendendo provocar um momento de boa disposição, que essa modificação legislativa poderá ocorrer com uma «pressão social que convença o legislador a mudar a lei ou decreto-lei.»). Não é assim, como é por demais evidente. Desde logo, porque um liberal não deve apoiar uma decisão errada, na esperança de que, no futuro, alguém a emende. Em segundo lugar, porque é sobejamente conhecido o habitual receio dos poderes públicos em enfrentarem direitos adquiridos (não por acaso, o PSD nada disse, até agora, sobre isto). Por fim, e sobretudo, porque o governo fez questão de anunciar esta intenção antes e não depois do referendo, do que resulta que ambas as questões se sobrepõem. Desse modo, não será de espantar que se venha a dizer, no futuro, que ambas foram simultaneamente referendadas. Se tecnicamente, não é assim(o que é, pelo menos, discutível), de facto, politicamente ninguém duvide que o acabará por o ser. O raciocínio tem, portanto, duas premissas e é elementar: o governo anuncia o referendo sobre o aborto e propõe a sua despenalização; simultaneamente, através do Ministro da Saúde, declara a prática do aborto, quando realizado nas condições referendadas, sustentada pelo Estado. É necessário retirar a conclusão? Na verdade, só quem estiver muito distraído ou a ver passar comboios, é que não terá ouvido as declarações do senhor Ministro, ou lhes pretenderá conferir uma importância menor do que a que efectivamente têm.
1. Económica. Num país que se debate com falta de meios para quase tudo, em que, particularmente, a saúde tem vindo a ser descurada pelos sucessivos governos, seja ao nível da prevenção, seja ao nível da assistência, não parece uma prioridade de saúde pública canalizar verbas para a prática gratuita do aborto. Só nesta última semana, discutiram-se a falta de meios de emergência e socorro no Alentejo, onde existe um único veículo de emergência médica para toda a região, e a não inclusão da nova vacina contra o cancro do útero no programa nacional de vacinação. Neste último caso, calcula-se que morra diariamente uma mulher em Portugal vítima dessa doença, cuja vacina está à venda por 480,00 euros, e, que se saiba, o Estado ainda não manifestou qualquer intenção de comparticipar nesses custos. É, por isso, difícil aceitar que o mesmo Estado que se queixa de falta de recursos para destinar à saúde, já os tenha para interromper gravidezes que não envolvam qualquer risco de saúde para a mãe ou para o feto. Não se espantem, por isso, se as pessoas forem mais sensíveis do que seria previsível a esta dimensão do problema. Não é egoísmo. É sensatez.###
2. Moral. Se aceitarmos que a decisão de abortar só pode ser tomada pela grávida e que mais ninguém deve interferir nela por dizer somente respeito à sua consciência, não podemos depois pedir ao Estado, isto é, à colectividade que ele representa, que assuma a responsabilidade de facultar os meios necessários a essa decisão. Por outro lado, se todos estamos de acordo em reconhecer que o aborto é um flagelo com sérias consequências emocionais e psíquicas para quem aborta, e que ele representa uma decisão-limite própria de quem não pode encarar outra senão essa, então, dificilmente poderemos sustentar um sistema que levará inevitavelmente ao facilitismo, ao laxismo e à desresponsabilização. Dito de outro modo, o assistencialismo do Estado fará com que as pessoas, sobretudo as mais jovens, olhem para o aborto como um vulgar acto médico sem repercussões pessoais, e não com uma decisão individual que quase certamente comportará consequências complexas para quem o decide enfrentar. O Estado não deverá perseguir, julgar e condenar quem aborta: é uma atitude liberal. O Estado deve apoiar financeiramente quem quer abortar: é uma atitude socialista.
3. Ideológica. «Máxima liberdade, máxima responsabilidade» é o que os liberais pensam da relação do indivíduo com a esfera pública, isto é, com o Estado. Não é, portanto, simultaneamente sustentável arguir-se a despenalização do aborto por razões de consciência individual da mãe e pretender que seja o Estado a responsabilizar-se por essa decisão. Faz lembrar um pouco aquela ancestral reclamação sobre a qualidade dos nossos empresários, de que estão sempre a queixar-se do Estado e a pedir-lhe sustento. Obviamente que se reclamamos que o Estado não deva punir quem aborta por se tratar, única e exclusivamente de uma decisão que só diz respeito à mãe, não podemos no momento imediatamente seguinte pretender responsabilizar a comunidade por essa decisão. São coisas diferentes, decisões distintas e que não deveriam ter sido confundidas, como o estão a ser.
Conclusão. Esta proposta sobre a lei do aborto é socialista. Resulta de uma visão sobre a natureza e das funções do Estado e do indivíduo que não é liberal. Não devemos levar isso a mal, porque todos temos direito a defender aquilo em que acreditamos. Mas, também, quem for convictamente liberal, não o poderá ignorar. Teria sido, portanto, mais compreensível que o governo tivesse legislado sobre o assunto como entendesse (tinha legitimidade política para isso), em vez de se ter escudado num referendo que nos envolverá a todos e que, ainda por cima, não anuncia com clareza a plenitude das consequências de cada uma das decisões em causa. Se tivesse decidido por via legislativa, daqui por algum tempo, em próximas eleições legislativas, um novo governo poderia alterá-las. Aparecendo elas na dependência do referendo, terá inevitavelmente que as submeter a um outro referendo, o que é impensável. Cada um que retire daqui as conclusões que entender.
P.S.: Para evitar a repetição de comentários ao «post», como o de que «é falso que quem votar "sim" se comprometa com o subsídio de abortos no SNS» (José Barros), aqui vão três links sobre as declarações do senhor Ministro da Saúde a esse respeito: 1, 2 e 3. Estas declarações têm por adquirido que, para o governo, a despenalização do aborto implica a sua sustentação pelo Estado. Até agora, que se saiba, não foram desmentidas por ninguém. Evidentemente que se poderá sempre alegar que uma coisa é o momento do referendo, e que outra será a decisão legislativa do governo em integrar a interrupção voluntária da gravidez no elenco das obrigações do SNS. E que, por conseguinte, no futuro, qualquer outro governo poderá modificar livremente esta última, mantendo o respeito pelo primeiro (o mesmo José Barros sugere, provavelmente pretendendo provocar um momento de boa disposição, que essa modificação legislativa poderá ocorrer com uma «pressão social que convença o legislador a mudar a lei ou decreto-lei.»). Não é assim, como é por demais evidente. Desde logo, porque um liberal não deve apoiar uma decisão errada, na esperança de que, no futuro, alguém a emende. Em segundo lugar, porque é sobejamente conhecido o habitual receio dos poderes públicos em enfrentarem direitos adquiridos (não por acaso, o PSD nada disse, até agora, sobre isto). Por fim, e sobretudo, porque o governo fez questão de anunciar esta intenção antes e não depois do referendo, do que resulta que ambas as questões se sobrepõem. Desse modo, não será de espantar que se venha a dizer, no futuro, que ambas foram simultaneamente referendadas. Se tecnicamente, não é assim(o que é, pelo menos, discutível), de facto, politicamente ninguém duvide que o acabará por o ser. O raciocínio tem, portanto, duas premissas e é elementar: o governo anuncia o referendo sobre o aborto e propõe a sua despenalização; simultaneamente, através do Ministro da Saúde, declara a prática do aborto, quando realizado nas condições referendadas, sustentada pelo Estado. É necessário retirar a conclusão? Na verdade, só quem estiver muito distraído ou a ver passar comboios, é que não terá ouvido as declarações do senhor Ministro, ou lhes pretenderá conferir uma importância menor do que a que efectivamente têm.