21.1.07
Nós sempre dissemos...
O Governo, através do primeiro-ministro José Socrates, decidiu, a partir de ontem, envolver-se na campanha sobre o referendo ao aborto - defendendo o lado do Sim. Julgo que o envolvimento do Governo - deste lado ou do outro - é um erro que ele vai pagar caro. Pelo contrário, o Governo deveria ter feito prova da sabedoria daquela instituição que é a sua grande opositora neste debate - a Igreja Católica a qual, possuindo embora uma posição sobre o assunto, decidiu não se envolver oficialmente na campanha.###
A partir de agora, o Estado português passa a ter uma posição oficial sobre uma questão que é uma questão de moralidade - o aborto. E a Igreja, que durante muito tempo teve a fama e o proveito de ser a religião oficial do Estado, deve estar agora a contemplar com interesse e curiosidade os elementos constitutivos da nova religião do Estado. Trata-se de uma religião laica, racionalista e democrática, mas para se acreditar nela é necessário fazer uso daquilo que caracteriza todas as religiões - a fé.
Tratando-se de uma questão de moralidade e de consciência, o tema do aborto nunca poderá ser decidido por argumento racional fundado - na realidade, só pode ser decidido por dogma. E, colocando-se fora do debate - ao contrário do que faz o Governo - a Igreja prepara-se para assistir àquele tipo de espectáculos que, a prazo, só reforçam a sua autoridade.
Do lado do Sim e do Não, serão esgrimidos milhares de argumentos ou razões, alguns sensatos, a maioria deprimentes - nenhum deles decisivo para convencer as pessoas a votar no Sim ou no Não. À medida que os dias forem correndo, as emoções subirão de tom e a animosidade e o insulto encontrarão o seu lugar na discussão. O estado do debate pode atingir o de uma enorme zaragata, mostrando à evidência como a humanidade necessita de liderança - a qual, obviamente, a Igreja está lá para fornecer. Os governantes vão-se desgastando (o ministro da saúde parece ter sido já a primeira vítima), enquanto a Igreja contempla.
No final da campanha, o debate alegadamente racional não terá produzido conversões, evidenciando que os dois lados da campanha baseiam as suas posições em preconceito ou dogma. E, dogma por dogma, dificilmente as pessoas trocarão o certo pelo incerto - uma conclusão que favorece a Igreja.
Se o Não ganhar, o Governo sai derrotado e a Igreja sai vitoriosa, sem sequer se ter envolvido no debate. Porém, a prazo, a derrota do Governo poderá vir a ser maior se ganhar o Sim. Neste caso, passado um ano, passaremos a ter estatísticas oficiais sobre o número de mulheres que abortaram no SNS. As notícias que farão as manchetes dos jornais serão do tipo: "Sete mil adolescentes entre os 12 e os 18 anos abortaram o ano passado em hospitais do SNS". E será apenas uma questão de tempo e de probabilidades até que os jornais titulem: "Jovem de 13 anos morre em hospital público durante um aborto".
Nesse dia - e estaremos então próximos das eleições - as responsabilidades pela vulgarização do aborto e pela morte da adolescente serão atribuídas ao Governo que se envolveu activamente na campanha pelo Sim. Enquanto a Igreja, naquela pose seráfica e demolidora, dirá apenas: "Nós sempre dissemos que não se deveria fazer um referendo sobre o aborto, e muito menos votar no Sim".