O PÚBLICO de ontem trazia um artigo que devia ser analisado linha por linha. Intitulado
«Diversidade cultural, Portugal defende-se da ameaça do comércio livre» o texto tem uma tese: sem o apoio do Estado fica em em causa a criação artística. Como se estão a comemorar os 70 anos da «Revolução de Maio», o primeiro filme de ficção integralmente pago pelo estado português, talvez seja o momento de nos interrogarmos sobre as vantagens de 'os nossos criadores ficarem à mercê da concorrência'.
Assembleia da República vai ratificar convenção da UNESCO. Sem esse documento, a cultura nacional estaria em perigo
O documento que hoje à tarde vai ser debatido na Assembleia da República é, usando o futebol, o contra-ataque da Cultura à ameaça que vem da Organização Mundial do Comércio (OMC). Foi para evitar que a liberalização total do mercado de bens e serviços pudesse atingir também os bens culturais que 148 países membros da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) aprovaram em Outubro de 2005 - votos contra dos EUA e Israel e quatro abstenções - a Convenção sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Sem essa convenção, e olhando apenas para o nosso caso, seria difícil à cultura portuguesa sobreviver nesse cenário de liberalização total. Porquê? Porque o Estado não poderia, por exemplo, apoiar as artes, colocando em causa a criação artística. O Instituto das Artes deixaria de apoiar programadores e criadores, o Instituto do Cinema e Multimédia (ICAM) não poderia dar dinheiro para garantir a sobrevivência do cinema português. «Sem esta convenção não poderíamos ter apoio às artes. Os nossos criadores ficariam à mercê da concorrência. O Estado não os poderia ajudar em nada. Nem mesmo a herança cultural de um país poderia ser objecto de uma política pública de salvaguarda», diz o secretário de Estado da Cultura Mário Vieira de Carvalho, que estará no Parlamento. Seria uma hecatombe cultural. No cinema, além dos apoios do ICAM, estariam em causa 42 milhões de euros de dinheiros comunitários que farão parte do Fundo do Cinema e do Audivisual, criado em 2006 e que entrará em breve em funcionamento. ###
«Este é o tipo de apoio que cabe perfeitamente dentro desta ideia de protecção da diversidade cultural», diz Vieira de Carvalho. Portugal esteve bastante envolvido neste processo, diz o secretário de Estado: a questão da diversidade cultural foi um «dos temas fortes da presidência portuguesa» da União Europeia e fazia parte da Agenda de Lisboa. A convenção «tem particular importância porque não pode ser desligada do movimento que existe, no âmbito da OMC, de liberalizar da circulação de mercadorias e serviços. Aqui também poderiam entrar os bens culturais e a questão que se colocava é se os bens culturais são meras mercadorias ou se há uma reserva de soberania dos Estados no sentido de terem políticas de protecção do seu património cultural».
A convenção, refere, «vem consagrar esse princípio», permitindo aos Estados a promoção «de políticas activas do património e da criatividade cultural». Só assim, diz, poderá ser assegurado «um diálogo intercultural activo». Sem este instrumento, essa liberalização, numa escala mais abrangente, «levaria ao domínio de algumas culturas sobre todas as outras» e ao «desaparecimento dessa riqueza que é a diversidade cultural». «(...) Os bens culturais não são meras mercadorias, há um valor identitário e antropológico que não pode ser colocado em risco por uma regulação deste tipo. Corria-se o risco de os países serem expropriados da sua herança mais valiosa, os seus valores, a sua cultura.» De novo o cinema: «Uma das áreas mais sensíveis é a do audiovisual. Seria muito difícil ao cinema europeu, etc., sobreviver porque os países mais poderosos conquistariam as quotas de mercado que ainda não têm. A convenção é fundamental para a afirmação das expressões culturais e vai permitir que os Estados possam apoiar as estruturas criativas facilitando a sua sobrevivência no mercado. O mercado vai funcionar sem que as políticas públicas dos Estados sejam colocadas em causa», salienta o secretário de Estado. Depois de a UE ter ratificado o documento em nome de todos os seus membros junto da UNESCO , Portugal prepara-se para o fazer individualmente. Vieira de Carvalho diz que não há atrasos, apesar de a convenção já ter sido ratificada por 35 países - 13 são da União. Nesse grupo está a França e a Espanha, mas potências como Inglaterra, Alemanha e Itália ainda não o fizeram. O membro do Governo diz: «[Por isso], estamos entre os primeiros. «Há uma explicação. Portugal» é um país especialmente sensível ao tema da diversidade cultural»: «Pela sua história, com a sua ligação à área ibero-americana e a África, Portugal está muito ligado à multiculturalidade. Já incorporámos isso na nossa própria cultura.» O documento deve ser votado e ratificado amanhã pelo Parlamento.