4.1.07

Palavras para quê?! (II)

Mais ou menos na altura em que o Presidente da República se questionava sobre a constitucionalidade de dois artigos da Lei das Finanças Locais, promulgou um Decreto-Lei do Governo em que tal inconstitucionalidade era bem mais evidente, constituindo mais um exemplo do respeito que a cúpula da da máquina fiscal tem pelos contribuintes e pela Constituição.###


O artigo 26.º, n.º 1 do Código do Imposto de Selo (CIS) diz o seguinte:
«(?) o beneficiário de qualquer transmissão gratuita sujeita a imposto são [é] obrigados [obrigado] a participar ao serviço de finanças competente a doação (?)»

No artigo 28.º, n.º 1 do mesmo código, na redacção introduzida pelo Decreto-lei n.º 211/2005 (e não 221/2005, como erradamente se refere na notícia do Público e no site da DGCI) podia ler-se:

«Seja ou não devido imposto, é sempre obrigatório prestar as declarações e proceder à relação dos bens e direitos, a qual, em caso de isenção, deve abranger apenas os bens e direitos referidos no artigo 10.º do Código do IRS, bem como outros bens sujeitos a registo, matrícula ou inscrição.»

O artigo 10.º do Código do IRS não se refere a valores monetários ou quantias em dinheiro, depositadas ou não em contas bancárias. O dinheiro, enquanto tal, não está também sujeito a registo, matrícula ou inscrição.

Daqui resultava que as doações em dinheiro, quando não dessem lugar ao pagamento de imposto (o que acontecia, por exemplo, nas doações entre cônjuges, ascendentes ou descendentes, de acordo com o artigo 6.º do Código do Imposto de Selo), não tinham de ser comunicadas ao fisco. Era o que resultava, claramente, dos tais artigos 26.º, n.º 1 e 28.º, n.º 1, do CIS.

O Governo aprovou em Novembro de 2006 o DL 238/2006, de 20/12, através do qual alterou o artigo 28.º do CIS, que passou a dispor:
«Seja ou não devido imposto, é sempre obrigatório prestar as declarações e proceder à relação dos bens e direitos, a qual, em caso de isenção, deve abranger os bens e direitos referidos no artigo 10.º do Código do IRS e outros bens sujeitos a registo, matrícula ou inscrição, bem como valores monetários, ainda que objecto de depósito em contas bancárias.»

No artigo 14.º do mesmo Decreto-Lei, pode ler-se:
«A redacção dada pelo presente decreto-lei ao n.º 3 do artigo 22.º do RITI e ao n.º 1 do artigo 28.º do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, tem natureza interpretativa».

Ou seja, no entender do Governo, na sua veste de intérprete autêntico, era possível interpretar-se o artigo 28.º do CIS, na sua redacção anterior, no sentido de o mesmo incluir já os tais valores monetários, ainda que objecto de depósito em contas bancárias.

Como é que se podia chegar a tal interpretação fica por explicar. Mais fácil de entender é o objectivo da qualificação da alteração como tendo natureza interpretativa. As normas interpretativas integram-se na norma interpretada, vigorando retroactivamente (desde a data da entrada em vigor da norma interpretada, como se esta sempre tivesse dito aquilo que resulta da norma interpretativa).
Assim, a falta de comunicação das doações em dinheiro ocorridas antes da entrada em vigor do DL 238/2006 passa a constituir, à socapa e retroactivamente, uma infracção fiscal, dando assim lugar ao pagamento de uma coima de 250 a 15.000 euros, apesar de se tratar de doações que não dão sequer lugar ao pagamento de imposto de selo.
A inconstitucionalidade de tal interpretação (que não é interpretação nenhuma, antes uma pura norma inovadora) é evidente. Mas os contribuintes afectados terão à sua frente um calvário judicial se pretenderem obter o reconhecimento da inconstitucionalidade da eventual cobrança de coimas pelo máquina fiscal, pelo que, provavelmente, muitos acabarão pagá-las voluntariamente, alimentando assim a voracidade de um Governo que não olha a meios para arrecadar receita, pisando os mais elementares direitos fundamentais dos cidadãos, a começar, no caso, pelo princípio constitucional de acordo com o qual ninguém pode ser sancionado por uma conduta que não fosse considerada infracção na data em que foi praticada.