17.1.07

Voto táctico no referendo ao aborto

O fenómedo de o eleitor não responder exactamente áquilo que lhe perguntam não é original. Acontece em todos os actos eleitorais. É uma forma legítima de fazer política sem a qual o eleitor estaria condenado a fazer as escolhas que mais prejudicam os seus interesses.

Dado que o eleitor só pode responder "sim" ou "não" àquilo que lhe perguntam e dado que a pergunta foi criteriosamente concebida de forma a não dar muito espaço de manobra ao eleitor é natural que o eleitor procure encontrar formas de responder à pergunta que, não correspondendo exactamente à sua opinião, correspondem aos seus objectivos políticos.
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É sabido que as condições políticas do país favorecem a liberalização do aborto mais década menos década. É sabido que se o "NÃO" ganhar, a vontade expressa pelos eleitores do "Não" será ignorada (o aborto será crime no papel, mas não na prática) e o referendo voltará a ser repetido mais cedo ou mais tarde. É sabido que se o "SIM" ganhar ganhará não apenas a ideia de despenalização do aborto mas também toda a ideologia de esquerda que tem investido políticamente nesta questão. É ainda sabido que após uma vitória do SIM ficarão muitas questões em aberto, tais como o financiamento público do aborto, que não foram sujeitas a referendo nem nunca vão ser. É sabido que o actual governo é socialista e que muitos socialistas vêm o aborto como uma questão de saúde pública e são a favor do aborto financiado pelo Serviço Nacional de Saúde. É sabido que este governo tem condições políticas para ficar por cá até 2013. É sabido que os direitos adquiridos raramente são revertidos. É sabido que se o SIM ganhar o eleitor dificilmente terá outra oportunidade de influenciar a política sobre o aborto, mas se o NÃO ganhar a questão voltará a ser colocada (votar no NÃO é votar num adiamento, votar no SIM é votar num desfecho irreversível).

Existem por isso boas razões para que um eleitor que seja genericamente a favor da despenalização do aborto vote NÃO. Pode votar NÃO por entender que a despenalização pura e simples, sem o controlo de determinados abusos, é inaceitável. Pode votar NÃO para adiar a questão por uns anos até que os defensores do SIM esclareçam as dúvidas pendentes sobre a aplicação concreta da despenalização. Pode votar NÃO por ser contra o aborto financiado pelo estado e entender que essa será uma das consequências irreversíveis do SIM. Pode votar NÃO por entender que o SIM será aproveitado politicamente por causas políticas que rejeita. Pode votar NÃO porque não se revê na visão do mundo dos grupos do SIM mais activos.

Apesar de a pergunta ser de resposta SIM/NÃO, a forma como os responsáveis políticos e os rostos principais das campanhas agirem é que determinará a forma como o SIM e o NÃO serão interpretados pelos eleitores e a forma como o SIM ou o NÃO serão implementados em concreto. Em última análise, a vitória de um ou de outro lado dependerá das garantias que cada um conseguir dar aos eleitores indecisos entre uma interpretação literal da pergunta e o voto táctico.